Imaginemos que viajávamos para o Nepal, um dia antes dos protestos em Katmandu. Ao passearmos pela capital, vemos no horizonte a silhueta das montanhas soberbas, enquanto de repente soam explosões, até que se vislumbra uma neblina de fumo: o Parlamento em chamas. Esta imagem é ao mesmo tempo trágica e gloriosa, já que para uns, representa a vingança e a catarse de anos de frustração, enquanto para outros, expõe as falhas do tecido social, a incapacidade de diálogo entre Estado e cidadãos e a lenta erosão da classe média.
Apesar da sua gravidade, a situação passou despercebida na maioria dos telejornais, relegada a notas breves sem o destaque que normalmente se dá a outros cenários internacionais. Mas estes protestos pertencem àquilo que poderíamos chamar de geopolítica intra-societal: manifestações de poder e de resistência que ocorrem no seio das comunidades, com impacto direto na vida de cada cidadão.
Cada casa funciona, neste sentido, como uma micro-embaixada. Nestes espaços debatem-se orçamentos, gerem-se recursos escassos e conciliam-se interesses divergentes, na luta por dignidade face a influências externas. A mesa da cozinha torna-se uma sala de negociações onde se discute a conta da luz, estica-se o salário até ao fim do mês e ponderam-se sacrifícios. O frigorífico espelha as cadeias de abastecimento globais, o preço do petróleo, conflitos longínquos e decisões tomadas a milhares de quilómetros.
Paralelamente, a classe média continua a encolher, reduzida a um dado estatístico, sem que se perceba que cada uma destas micro-embaixadas perde influência, ficando mais vulnerável. Na altura em que o sufoco se torna insuportável, esta diplomacia doméstica deixa a cozinha e ocupa as ruas. Os protestos no Nepal, desencadeados pelo aumento do custo de vida e pela precariedade, ilustram como o quotidiano consegue incendiar a esfera política global.
Longe de ser um fenómeno isolado, basta evocar a Comuna de Paris em 1871, na qual a fome e o descontentamento deram origem a uma revolução, ou o incêndio do Reichstag em 1933, usado como catalisador para uma nova ordem autoritária na Europa, com repercussões em todo o mundo. Em 2010, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante na Tunísia, imolou-se em protesto contra a corrupção e a falta de oportunidades, gesto que desencadeou a Primavera Árabe e mudou o rumo político do Médio Oriente. No Chile, em 2019, a subida do preço dos transportes públicos foi a centelha que levou milhões às ruas. Sempre que as instituições falham em responder às necessidades básicas das sociedades, o fogo, literal ou simbólico, ressurge.
Esta dinâmica social encontra-se numa fase de transição. À imagem da ordem global, que se redefine pela competição entre as potências e por instituições internacionais frágeis, também o equilíbrio interno das sociedades atravessa um processo de instabilidade. Neste contexto, as manifestações que irrompem em diferentes pontos do mundo são sintomas desta crise estrutural, como erupções de um vulcão social em ebulição. Se não forem compreendidas e geridas com inteligência política, podem conduzir a consequências catastróficas para as nossas sociedades, que permanecem pouco preparadas para lidar com a velocidade e a profundidade das mudanças atuais.
Num passeio por uma capital europeia, ouvem-se discursos que revelam uma crescente polarização e insatisfação com a elite política, enquanto as condições de vida se degradam e vão alimentando ressentimentos profundos, cada vez mais visíveis. A proliferação ubíqua das redes sociais, usadas tanto para mobilizar protestos como para incitar violência, potencia a radicalização. É uma espécie de antropofagia política: as sociedades devoram-se a si próprias, corroídas por pressões internas e externas. Todavia, ainda não há plena consciência deste perigo, nem de que a nossa realidade é mais permeável ao extremismo do que nunca.
Como temos vindo a observar, as ruturas sociais podem ser inesperadas, surgindo de forma súbita e avassaladora. Até os gentis-homens, como escrevia Shakespeare, podem num instante decidir marchar sobre a cabeça dos reis – neste caso, daqueles que elegeram.