Opinião

“Cala-te! Vê lá se queres ficar com a tromba cheia de sangue!” - quando o protector se torna o agressor

Um chefe da PSP especializado no combate à violência doméstica acusado de agredir a própria mulher durante uma década, expõe a contradição mais perversa do sistema: quando o protetor se transforma em predador. Este é tema do “Além dos Títulos” desta semana

A ironia mais cruel da justiça portuguesa acabou de vir à tona: um chefe da PSP especializado no combate à violência doméstica - aquele que deveria ser o primeiro a erguer-se em defesa das vítimas - foi acusado pelo Ministério Público de infligir exatamente o mesmo terror que combatia profissionalmente.

Durante mais de uma década, segundo a acusação, este homem transformou o seu lar numa prisão de agressões e ameaças contra a própria mulher. A notícia, revelada esta semana, não é apenas mais um caso de violência doméstica - é o espelho perverso de um sistema que falha nas suas fundações mais básicas, onde o protetor se revela predador.

O arsenal de terror deste homem de 41 anos ia muito além dos punhos: a violência psicológica era a sua arma predileta de destruição. "Esta casa vai ser a casa dos horrores!", "És uma burra, não serves para rigorosamente nada!" e "Vai mas é para a cozinha que lá é o teu lugar!" - cada palavra uma bala certeira contra a dignidade humana de quem deveria proteger e amar.

Mas o pior estava ainda para vir. Nos momentos mais sombrios, este predador chegou ao impensável: ameaçou queimar vivos a mulher e o filho, regando-os com gasolina enquanto estes rastejavam em súplicas desesperadas pela vida. E quando o medo não bastava, sacava o seu trunfo final: "Tenho amigos no Ministério Público" - transformando a própria justiça numa arma de chantagem, numa barreira intransponível entre a vítima e a liberdade.

O Lobo disfarçado de Pastor

Este caso não é isolado. Em agosto de 2025, um PSP reformado, em Sesimbra, espancou brutalmente a mulher, deixando-a com ferimentos no rosto. Quando a GNR chegou ao local, encontraram a vítima ferida e o agressor com várias armas de fogo na sua posse. O homem ainda resistiu à detenção, demonstrando total desprezo pela autoridade que outrora representava.

Mas há casos que se tornam símbolos da perversão absoluta. O agente que "dormia com a pistola debaixo da almofada" permanece como a metáfora perfeita do terror doméstico institucionalizado. Em Silves, 2017: um homem de 58 anos converteu o seu lar numa prisão de alta segurança, onde cada noite a companheira e a filha desta adormeciam sabendo que uma arma carregada pairava a centímetros das suas cabeças. O sono transformara-se em pesadelo, a cama em câmara de tortura psicológica - até que a GNR quebrou finalmente este ciclo infernal de perseguições e agressões.

Julho de 2025 trouxe uma reviravolta perturbadora: em Faro, uma agente da PSP tornou-se ela própria agressora, agredindo o marido com tanta violência que enviou ambos para o hospital. Quando a lei se volta contra si mesma, quando quem deveria encarnar a justiça se torna o próprio carrasco, assistimos ao colapso dos valores que sustentam a nossa sociedade.

A Impunidade e a traição da confiança pública

As estatísticas revelam a dimensão do problema: em cinco anos, foram abertos 495 processos disciplinares por violência doméstica a agentes da PSP e militares da GNR. Contudo, apenas um em cada cem denunciados foi impedido de voltar a vestir farda, transmitindo uma ideia de impunidade institucional que perpetua o ciclo de violência.

O mais perturbador nestes casos é a dupla traição que representam. Não apenas traem a confiança das suas vítimas diretas, como traem também a confiança de todas as vítimas de violência doméstica que procuram ajuda nas instituições onde prestam serviço.

Como pode uma vítima sentir-se segura ao denunciar o seu agressor quando quem a deveria proteger é, ele próprio, um perpetrador de violência?

O juiz Neto de Moura, punido com uma simples advertência registada por citar a Bíblia para justificar violência contra mulheres adúlteras, foi posteriormente afastado dos casos de violência doméstica. Mas quantos outros magistrados com mentalidades similares continuam a julgar estas situações sem qualquer supervisão?

O relatório do GREVIO critica o poder judicial português por favorecer "a proteção da família em detrimento dos direitos das mulheres vítimas", perpetuando a ideia do "bom pai e mau marido" e ignorando o impacto devastador da violência doméstica nas crianças.

A urgência de uma resposta exemplar

Portugal precisa urgentemente de uma rede nacional de apoio jurídico preventivo às vítimas de violência doméstica, como tenho defendido publicamente. Mas essa rede será sempre insuficiente se não garantirmos que quem a compõe merece a confiança das vítimas que procuram proteção.

A violência doméstica ocupa já o terceiro lugar no ranking sombrio da criminalidade portuguesa, representando 9% de todos os crimes registados em 2024.

Quando os próprios agentes encarregues de combater este flagelo se transformam em perpetradores, não estamos apenas perante crimes individuais – estamos perante uma crise institucional que exige tolerância zero.

É imperativo implementar mecanismos rigorosos de seleção psicológica, formação obrigatória sobre violência de género e protocolos que impeçam automaticamente que suspeitos de violência doméstica continuem em funções operacionais.

A credibilidade das nossas instituições depende de uma resposta exemplar que demonstre que a violência doméstica é incompatível com o exercício de funções públicas.

O grito desesperado de uma criança – "Pai, pára de bater, por favor" – jamais pode erguer-se das casas daqueles que juraram proteger os mais vulneráveis.

A dignidade da Justiça e a segurança das vítimas exigem que esta contradição intolerável seja definitivamente erradicada das nossas instituições. Quando aqueles que deveriam ser a primeira linha de defesa contra a violência se transformam nos próprios perpetradores, não estamos apenas perante uma falha individual – estamos perante o colapso moral do próprio Estado de Direito.