Opinião

“Bem-vindos ao deserto do real”

Estamos em plena pandemia, fechados em casa, e só a produção e distribuição da vacina, pensadas com a lógica do interesse público global, nos podem salvar mas o que prende verdadeiramente as pessoas é que uns funcionários de uma pastelaria no Porto foram vacinados com umas sobras

É também de 1999. Alguém deveria fazer uma pesquisa sobre o que se passou no ano anterior para que em 1999 saíssem tantos filmes bons. Foi um belo ano. Talvez um dos melhores da minha vida, o que não interessa para nada. Este artigo é também sobre isso.

Matrix, filme realizado pelos irmãos Wachowski, Larry e Andy, actualmente irmãs Wachowski, Lana e Lilly. Lana assumiu-se como mulher transexual em 2012 e Lilly em 2016. A vida pessoal dos realizadores de cinema não costuma acrescentar interesse aos filmes que fazem. Aqui estão reunidas as condições para se abrir uma excepção.

Quem viu o Matrix ficou com uma porta mais aberta para a admissão da possibilidade de que o que vemos como realidade pode não corresponder ao real. Não era preciso, é certo. Já Platão, na alegoria da caverna, nos descrevia como seres desde sempre prisioneiros numa e com um raio de visão restrito às imagens projetadas na parede dessa caverna, sombras de seres humanos que se movimentam. O nosso universo perceptivo, para Platão, limitava-se a essa visão. Desconhecemos a realidade complexa, a causa das sombras que avistamos e o caminho que nos poderia levar para o exterior da caverna, onde tudo se passa e onde está a verdade.

Outros autores – filósofos, intelectuais, artistas – vieram sacudir-nos e acenar com essa possibilidade, normalmente de forma metafórica, como um convite ao exercício da imaginação (como no livro “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll – obra que tanto terá influenciado as irmãs Wachowski no Matrix: o coelho, o espelho, a entrada no novo mundo) ou ao exercício intelectual em que se torna obrigatório admitir que isto pode não ser bem o que parece. Descartes concluiu que a percepção não é um meio fiável de obter informações e que apenas a sua capacidade de pensar lhe permitia não duvidar da sua própria existência. Se não pensasse poderia nem existir. Nenhuma prova teria disso. O cepticismo de Descartes é também um bom treino.

Hoje é a vez da trilogia Matrix. Neo, Keanu Reeves, um jovem programador, é o escolhido para libertar a humanidade que vive prisioneira de uma ilusão criada por um sistema inteligente e artificial que manipula as mentes dos humanos e que lhes cria a ilusão de que vivem uma vida dita normal quando na realidade estão imobilizados e a ser usados como baterias produtoras de energia para as máquinas que os dominam. Existe uma esperança; o movimento de resistência liderado por Morpheus (Laurence Fishburne).

Trata-se da escravidão levada ao expoente máximo, com a total falta de consciência e a ilusão de uma vida, onde não existe o sofrimento efectivo. A humanidade está entretida com a ilusão que lhe é oferecida. Há um momento interessante no filme; aquele em que Cypher, Joe Pantoniano, um membro do movimento de resistência, farto do sofrimento e das durezas da realidade, trai o líder Morpheus, entregando a sua localização, em troca do seu próprio regresso ao Matrix, à ignorância.

É preciso alguma cautela quando se fala na possibilidade de a humanidade viver absorvida por uma grande ilusão em tempos de pandemia. Existe uma remissão automática para as teorias negacionistas. Este artigo não é sobre negacionismo. Acredito na pandemia. Quem me dera dar a notícia de que a pandemia é uma encenação. Não posso. Do que percebo estamos metidos num grande sarilho.

Um vírus que mata e que se propaga a menos que estejamos sossegados em casa. Passada uma semana do confinamento mais restritivo, o que começou em meados de janeiro, a propagação do vírus diminuiu 40%. Isto não são boas notícias. Até a população mundial estar vacinada ou imune vamos andar nisto: confina, desconfina. O vírus anda ao nosso toque de caixa. Só sossega se também sossegarmos. É um carcereiro. Quando vamos para as ruas, ele vai também. É tudo muito rápido: o descalabro e a regressão para uma situação aceitável. Basta estarmos fechados em casa.

É pois fundamental que nos debrucemos no que importa, o que nos poderá tirar deste mantra: o plano de vacinação. É verdade que vemos os portugueses interessados no processo mas estão sobretudo interessados em detalhes e mesquinhices inevitáveis numa altura destas. Poderão ter existido titulares de cargos que usaram essa qualidade para ter acesso prévio e indevido a vacinas, pode dar-se o caso de ter existido uma má gestão das sobras ou até alguma falta de estratégia para esses casos. Mas qual será o verdadeiro impacto desses factos no andamento do processo de vacinação? Não deverá ser tanto e tempo haverá para se avaliar tais factos mas a prioridade agora não pode ser essa. Estamos em plena pandemia, fechados em casa, e só a produção e distribuição da vacina, pensadas com a lógica do interesse público global, nos podem salvar mas o que prende verdadeiramente as pessoas é que uns funcionários de uma pastelaria no Porto foram vacinados com umas sobras.

É que, mesmo que atendamos aos aspectos importantes, o interesse no plano de vacinação deve ir além do que vai ser feito em Portugal; enquanto houver países não vacinados vamos estar neste loop. É certo que existe o risco de desenvolvimento de novas estirpes nesses países e há o grande risco de as vacinas que se conhecem poderem não ser eficazes contra novas variantes. Já acontece actualmente com a da África do Sul. Segundo noticiou o Expresso “a vacina da Astrazeneca revelou, durante os ensaios realizados, uma "eficácia significativamente reduzida" contra a variante viral 501Y.V2, que é dominante na África do Sul.” É isto que poderá continuar a acontecer.

Na União Europeia fizeram-se parcerias público-privadas com a BioNTech-Pfizer, a Moderna, a AstraZeneca, a Johnson & Johnson, a Sanofi-GSK e a CureVac. Não são conhecidos os exactos termos acordados mas é certo que a UE financiou a produção das vacinas. Sucede que a patente é propriedade das farmacêuticas e são elas que as produzem ao ritmo das suas capacidades mas também ao ritmo da sua própria estratégia de negócio. É óbvio. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, já acusou os laboratórios de “falta de transparência”. Disto nos falou João Ferreira no Público.

Ou seja, nem na União Europeia as coisas correm de feição. E no resto do mundo? Como se pode aceitar que se preveja, neste momento, que muitas dezenas de países, os pobres, fiquem para trás no processo de vacinação? As previsões para esses países são de um atraso extremo no início de vacinação e de apenas um décimo da população aceder. Inaceitável. Adiante. Vejamos o que disse Bill Gates sobre o tema:

“Mesmo que as nações ricas consigam retardar a disseminação da doença ao longo dos próximos meses a Covid 19 pode voltar se a pandemia persistir noutros lugares. É muito provável que seja apenas uma questão de tempo até que uma parte do planeta volte a infectar a outra (...) Acredito muito no capitalismo mas alguns mercados simplesmente não funcionam adequadamente numa pandemia e o mercado de suprimentos médicos é um exemplo claro.”

Cito o Bill Gates não tanto pelo que diz, é puramente óbvio, mas por ter sido ele a dizê-lo. Amantes do sistema capitalista: o grande líder está preocupado e tem razões para estar. Se for a lógica de mercado a presidir ao processo de vacinação acabamos com o mercado e, já agora, com uma coisa um bocado mais importante, as nossas vidas. Só que é preciso ir muito mais longe: libertem as patentes. Elas são um bem público. A lógica capitalista mata se for caso disso. Sim, morre-se deste vírus e morre-se de pobreza.

A nossa capacidade de resistência é assinalável. É certo que terá ajudado este pensamento em segmento de recta que mantemos desde o início: primeiro era uma quarentena de duas semanas, depois haveria um pico em Maio, depois a coisa resolvia-se com o calor, depois a imunidade de grupo na Suécia seria uma bom exemplo a seguir, depois, depois, depois. Aqui estamos. Isto não tem fim certo à vista. A única estratégia – para já – que faz algum sentido é a de vacinar e vacinar todos. A fome podia estar circunscrita a África, a pobreza em geral aos países do Sul, mas este vírus não aceita localizações específicas e não distingue pobres de ricos. Varre tudo.

Se deveríamos ter acabado com a fome por razões éticas, também agora deveríamos exigir que se inclua no processo de vacinação mesmo os países que não o podem pagar. Só que agora é obrigatório fazê-lo. Podem até ser esquecidas as razões éticas. É uma questão da nossa própria sobrevivência.

Portugal, actualmente na presidência do Conselho da União Europeia, poderia ter aqui um papel. Talvez não. Não sei se o exercício desta presidência não corresponde à nomeação da miss simpatia. Vamos ver.

Uma questão deve ser colocada: porque não é este o foco do interesse de todos os que têm medo da pandemia e da crise económica onde já estamos mas que ainda se notará muito mais?

É aqui que voltamos ao Matrix. O que ilude as pessoas agora e as distrai daquilo que tem o potencial de salvar as suas vidas?

Haverá vários focos de distracção mas destaco um: o vício na auto-expressão e no individualismo, no interior, no que se sente, na opinião pessoal que se sobrepõe à de um grupo mesmo que a ele pertençamos.

É um tema complicado. A auto-expressão é libertadora e é bela e foi assim que se conseguiram vitórias muito importantes mas é sobretudo uma grande armadilha quando as coisas estão complicadas. Pois bem, as coisas agora estão muito complicadas.

As redes sociais (são só um exemplo, há individualismo em cada esquina) – espaço onde libertamos os nossos pensamentos mais íntimos ou mais revolucionários – são o nosso campo de morte. São demasiadas opiniões. Não adianta. Por mais que nos sensibilizemos a ler o que ali está ou a contribuir também com o que nos vai na alma ou na inteligência – devemos ter a consciência de que não é ali que teremos o que é preciso ou que resolveremos o mais importante. São um ampliador de egos, de conflitos e também um espaço para deixar depositadas boas intenções e bons conteúdos que de pouco servirão. Não é um exclusivo das redes sociais, a militância individual, e também não é um exclusivo da direita. A esquerda também padece. Vamos lá ver: é um problema absolutamente generalizado esta ideia de que é eficaz enfrentar problemas sociais individualmente ou de que a afirmação da nossa singularidade, perante o colectivo, pode ter valor. Terá algum. Não tem é grande utilidade quando temos problemas colectivos para resolver. Pelo contrário. Somos um somatório de opiniões e isso não tem nada a ver com uma opinião colectiva. Vários músicos a tocar cada um o seu instrumento – alguns da forma mais bonita que conseguem outros bem pelo contrário - mas isso não forma uma orquestra e o que fazem é ruído e não melodia.

Tem que se voltar à organização de grupo: partidos políticos, movimentos ideológicos ou, se quiserem, colectividades. Deve mesmo ser um grupo. Devemos diluir-nos num e nele darmos o nosso melhor. Não é sobre a personalidade de cada um, não é sobre o que nos distingue como indivíduos por mais interessantes que sejamos. Quando as coisas estão complicadas precisamos de poder para as resolver e o poder vem da união e não de brilhos avulsos.

A ilusão de uma boa performance individual é isso mesmo. Não se chega lá assim. A realidade está aí e há um caminho. Podemos fazer como Cypher e continuar nas brincadeiras mas isto tem tudo para correr mal. No Matrix havia um escolhido mas estava num grupo: a resistência.

Sem ser muito inovadora relativamente à interpretação da trilogia é certo que existe uma teoria da dominação que se traduz numa crítica à sociedade contemporânea (sem nunca se referir diretamente ao capitalismo) e uma teoria da resistência que assenta na possibilidade da revolução e a teoria do adormecimento, a que aponta para a possibilidade de andarmos iludidos enquanto a realidade nos escapa.

Isto parece claro, se bem que na continuidade da trilogia a possibilidade da revolução acaba por perder o que muitos esperavam, mas existe uma interpretação recente que não era nada clara para quem viu o filme. Nada clara mesmo. Foi uma das realizadoras que a deu e, também por isso, deverá ser ouvida e revisto o filme com outros olhos. No ano passado, numa entrevista à Netflix, Lily Wachowski referiu que a narrativa é “sobre o desejo de transformação, mas foi apresentada de um ponto de vista muito fechado”, uma vez que o “mundo corporativo não estava pronto para ouvir a mensagem”. Pois é, o Matrix é sobre a transição de género. Recomendo a leitura, no Twitter, desta thread, da Netflix, de 6 de Agosto de 2020. Começa assim:

“For years, fans of THE MATRIX have discussed the film through a trans lens. If you’ve heard the theory before or just learned about it, here’s a thread breaking down the trans allegory of the film, from trans writers and critics. Welcome to the desert of the real. (thread)”

Impossível falar do Matrix sem usar a frase que serve de título a este artigo e de mote à thread da Netflix mas tenho que discordar; a realidade é tudo menos um deserto. Uma selva talvez. Concordo no mais importante: devemos lá entrar. Que seja em grupo, diluídos num raciocínio maior que o que temos dentro das nossas próprias cabeças.