Opinião

Quarenta e quatro pontapés

Maus-tratos numa creche açoriana abalam o país – este é o tema do Além dos Títulos desta semana. 44 crimes, quatro arguidas, uma comunidade revoltada e uma pergunta incómoda: quantos sinais ignorámos até aqui?

Quarenta e quatro crimes. Uma creche. Quatro arguidas, num recanto dos Açores que todos gostariam de imaginar como seguro para crianças entre o berço e o primeiro diálogo.

Mas a segurança, em Rabo de Peixe, transformou-se no reverso: quarenta e quatro vezes ficou provado que o que devia ser colo foi agressão, que a palmada “pedagógica” não existe, que há lugares onde as crianças são empurradas, violentadas, obrigadas a engolir o que não querem e a suportar o que ninguém devia tolerar.

O Ministério Público acusou as quatro funcionárias – ex-auxiliares de educação da Casa do Povo – por maus-tratos a crianças entre um e três anos. Para cada uma, números que fazem perder o sono: 16, 17, 8 e 3 crimes, entre 2015 e o primeiro semestre de 2025, com especial intensidade nos últimos meses.

O mecanismo da denúncia só funcionou por força de uma nova direção e de uma nova educadora, que estranhou os sinais, ouviu as mães, instalou câmaras e não hesitou em ir ao Ministério Público com as imagens para que não se repetisse mais um segundo desta violência.

Despedimento com justa causa. Mas longe de ser o fim da história: nota de culpa em julho, decisão em agosto e impugnação judicial do despedimento.

A guerra jurídica está apenas a começar.

Não há admissão pacífica quando está em causa o ganha-pão, mesmo que esse pão tenha sido sujo pelas mãos que deviam cuidar. Mas há um limite: há fronteiras éticas, há leis, há direitos.

E foi por isso que uma petição promovida por pais e comunidade reuniu 2661 assinaturas – cada nome um grito de indignação que exigia a suspensão imediata das "acusadas".

Não por vingança, mas por um princípio inviolável: o direito sagrado de cada criança à segurança absoluta – livre de qualquer violência, especialmente daqueles cuja missão é protegê-la.

Falta, ainda, a ação das autoridades.

A Segurança Social concluiu a inspeção, houve relatório, vai seguir para o Ministério Público. No processo, outros funcionários são referidos por passividade – silêncio que também é cúmplice, porque testemunhar agressão sem reagir é permitir que a agressão perdure.

Não há espaço para meios-termos. O segredo de justiça não pode ser biombo para silenciar a indignação coletiva. E muito menos serve para mascarar uma verdade nua e crua: a palmada "pedagógica" é violência pura – sem aspas, sem eufemismos.

Não falta legislação. Falta humanidade, monitorização e, sobretudo, a coragem de exigir responsabilidades no momento certo, com as consequências que se impõem.

Literacia digital não é apenas saber usar o telemóvel – é saber a quem pedir socorro, conhecer os nossos direitos e ter a audácia de os exercer. É conhecer a Constituição não como papel morto, mas como escudo vivo da nossa dignidade coletiva.

Uma democracia define-se pelo modo como protege os seus mais vulneráveis. Não podemos permitir que o Estado – que sou eu, que é o leitor, que é cada advogado, cada mãe, cada pai – vire costas a quem não se pode defender.

Insisto, como já escrevi: quando um adulto bate numa criança, mata-se a esperança, desacredita-se o Estado e obscurece-se a sociedade.

Só há justiça quando há responsabilização.

Só há futuro quando há coragem de dizer: basta.

Este artigo é, pois, um grito de alerta e um apelo à denúncia corajosa, à vigilância constante, à busca de orientação jurídica, à literacia que nos protege e ao compromisso de nunca calar nem desviar o olhar.

Porque cada pontapé, cada agressão, cada silêncio cúmplice é um crime contra a infância. E numa democracia digna desse nome, isso é inadmissível.