Opinião

Boicotar a Eurovisão é uma atitude burra

O Festival da Eurovisão foi um espaço relevante na luta possível à ditadura salazarista. Nos finais da década de 1960 e na primeira metade da de 1970, os compositores, grande parte deles opositores ao regime, aproveitavam para criar músicas que driblassem a censura, e que, ganhando, pudessem ser, nos festivais europeus, veículos de afirmação da luta pela liberdade

Não têm sido poucos os políticos europeus a reclamar a proibição da participação de Israel no festival da Eurovisão. Com uma dimensão menor, também se ouviram, no passado, reclamações no mesmo sentido relativamente à Rússia.

As autoridades de Israel têm sido acusadas, muito acertadamente, por terem concretizado um genocídio nos territórios da Faixa de Gaza; o governo russo tem, também, um rol de acusações no Tribunal Penal Internacional que decorrem dos crimes de guerra decorrentes da invasão da Ucrânia.

Há, contudo, uma obrigação que os políticos ponderados devem assumir – não misturar as questões políticas, que a diplomacia tarda a resolver, com as artes ou o desporto.

Ao longo de muitas décadas do século XX, não foram poucos os países que estiveram nos holofotes das chamadas democracias ocidentais. Espanha e Portugal, ditaduras bárbaras que atravessaram metade do século, não seriam poupadas, sendo mesmo condenadas duramente pela Organização das Nações Unidas.

Mesmo no tempo insano das décadas de 1930 e 1940, quando o velho continente se encontrava em guerra, a música e o desporto conseguiram fazer pontes, manter linhas de contacto, mesmo que muito finas.

Também no tempo da Guerra Fria, nos períodos das guerras de independência dos povos africanos, foi o desporto e a música que mantiveram o mínimo de cordialidade entre povos. Mesmo em guerra, os povos precisam de se rever em momentos de união, mas há gente que se radicaliza, à esquerda e à direita, para impedir esse mínimo de confiabilidade.

Portugal tem sido muito marcado pela política pouco lúcida do atual governo do reino de Espanha. Pedro Sanchez desmerece sobre tudo o que importa fazer convergir, ganha-se numa fortaleza que demonstra os seus pés de barro.

Uma vez mais, sobre a questão da Palestina, o seu comportamento tem sido lamentável, por vezes tresloucado. Na comunidade internacional, na forma corrente de resolver os problemas entre nações que é assumida pela diplomacia, o estar sempre a fugir das decisões coletivas que devem ser assumidas nos fóruns a que se pertence, não mostra sabedoria, não releva para uma solução rápida.

Sanchez sobrevive na governação sem orçamentos, sem maiorias parlamentares, sem ordem e ponderação. Porém, são os casos e as emoções do momento que o levam no dia a dia da agenda política, surfando ondas e provocando o esfarelar da relação entre comunidades e cidadãos.

Por implicação espanhola, por mobilização de muitos agentes que se revoltam contra o genocídio, mas que não ponderam na melhor forma de castigar os governantes israelitas em vez de castigarem o povo judeu, em Portugal assiste-se também ao início de um pedido de boicote à participação em todas as iniciativas onde estejam israelitas. Um erro grave que não abona da nossa inteligência.

O Festival da Eurovisão foi um espaço relevante na luta possível à ditadura salazarista. Nos finais da década de 1960 e na primeira metade da de 1970, os compositores, uma grande parte deles opositores ao regime, aproveitavam para criar músicas que driblassem a censura, e que, ganhando, pudessem ser, nos festivais europeus, veículos de afirmação da luta pela liberdade.

Muitos dos que hoje querem barrar os cantores de Israel, esquecem que em 1969 se cantou, num país cinzento, a Desfolhada, hino à mulher e à sua emancipação, o grito de “Quem faz um filho fá-lo por gosto”; que em 1971, o Cavalo à Solta era, em tudo, uma via para a liberdade, um usar da criatividade para que o povo português fosse mais além do que a mera réplica das canções populares; que em 1972, Vamos Cantar em Pé era, no seu refrão, o quebrar dos medos, o abrir horizontes, o bailar de olhos abertos; que, já em 1973, a Tourada foi levada ao mundo pela inegável criatividade de Ary dos Santos e, clamando liberdade, conseguiu vencer o regime que queria impedir a sua presença no festival da Eurovisão no Luxemburgo.

Por último, nunca devemos esquecer a dimensão política de E Depois do Adeus que Paulo de Carvalho cantou de uma forma magistral e que se transformou num hino de Abril.

Se o mundo democrático tivesse tido, para com o Portugal da altura, o que muita gente reivindica hoje quanto a Israel, a luta pela democracia teria sido muito mais difícil, menos atendida pelos povos que se esqueciam de nós, menos capaz de vencer nos jovens que queriam liberdade e paz.

Boicotar Israel na Eurovisão não é boicotar as autoridades deste país. É boicotar o povo judeu e, principalmente os letristas, os compositores e os interpretes que são, ou podem ser, uma luz contra o silêncio e contra a guerra.