“E o verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo,1,14). É esta a frase chave dos cristãos para o Natal que se aproxima. Nele se assinala a esperança, o sublime, o belo e o bom. Mas também a tristeza, a angústia e o sofrimento.
Todavia, o Natal hoje não é apenas uma data ou festa dos cristãos. É uma data do mundo. Independentemente da geografia, da cultura ou da etnia, constrói-se uma árvore de Natal, representa-se um Pai Natal com as suas renas, reconstrói-se um presépio, promovem-se encontros familiares ou amigos.
Infelizmente, apesar dessa quase universalidade este é, cada vez mais, o Natal da indiferença, da frivolidade, do tempo profano, da moda, do hiperconsumo. Um Natal materialista, individualista, apenas mais um dia de férias, em que se consomem e oferecem coisas ou destinos a ver. Um Natal que é, tão só, mais um pico consumista no tempo acelerado, entre o real e o simulacro digital, em que a humanidade vive atualmente.
Mas o Natal que arranca da frase do Evangelho que dá início a esta crónica, é o Natal dos enfermos, dos pobres, dos abandonados, dos refugiados e perseguidos. É o Natal da paz, contra as guerras e a violência, do amor e amizade contra o ódio, da esperança contra a inveja e o ressentimento. É o Natal dos que morrem ou sofrem, na Ucrânia, em Israel, na Palestina ou, infelizmente, em tantos outros lugares por esse mundo fora. É o Natal dos que, sofrendo, e sem tantas vezes disso se darem conta, procuram avidamente a voz de Deus.
Voz que nos ajuda a renascer face às agruras da vida. Que nos chama à responsabilidade pelos nossos atos, enquanto humanos sujeitos da liberdade e da escolha fraterna. Mas também a voz que nos faz crescer espiritualmente, ao encontro do outro, como se fossemos nós mesmos (lembrando Levinas ou Ricoeur). Voz que também nos desperta para a alegria de viver na contingência, na indeterminação da natureza que nos rodeia.
É esse, aliás, por exemplo, o significado do presépio: a recriação da simbiose, da harmonia, entre o humano e natureza, no espaço-tempo do mundo. Uma relação sagrada no amor a Cristo que teve, justamente, a sua primeira representação em Assis, pela mão de São Francisco.
Presépio que, quer por receio de cancelamento, que devido a outra qualquer causa minoritária efervescente, corre o sério risco de perder o seu lugar no Natal de cada um. O que será uma enorme perda para todos, pois ser cristão, hoje, é um sinal de abertura e ecumenismo que não deve chocar ninguém. E muito menos quando o que se representa, é o encanto de uma família, o nascimento de uma criança, uma nova vida, com o todo o seu milagre.
Milagre que é também o do tempo, como um trilho desconhecido, que se percorre paulatinamente, através da memória e da saudade, realizando o homem na sua imperfeição e finitude. Milagre que é também o da fé, da confiança, da nossa relação pessoal com um Deus presente no mundo.
Por isso, celebrar o Natal significa olhar para cima, sentir o tempo em cada um de nós, no advento que antecipa Cristo, Deus feito homem, cuja corrente, cujo fio da trama, vem dos primórdios e é composto por todos os que nunca desistiram de lutar por um mundo mais digno e justo.