Opinião

A ciência em Portugal e as curiosidades do SIFIDE

É necessário reforçar o Orçamento do Estado de I&D que, em 2023, correspondeu a 0,73% do PIB, mas onde os fundos nacionais representavam apenas 0,33%. Isto significa que mais de metade do OE de I&D está baseado em fundos europeus e, assim, sujeito as regras, orientações e eventuais cortes de Bruxelas – e não a estratégias nacionais de I&D

Um dos indicadores internacionais mais comuns para medir a atividade de Investigação e Desenvolvimento (I&D) de um país é a despesa executada em I&D em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Os últimos dados disponíveis indicam que em 2022, em Portugal, a despesa total em I&D foi de 1,73% do PIB, abaixo da média dos países da OCDE de 2,72% e ainda distante da meta estabelecida em Conselho de Ministros de 3% para 2030.

É um facto que, desde 2015, a despesa em I&D tem vindo a aumentar de um valor mínimo nesse ano de 1,24% do PIB. De um modo geral, a execução da despesa é realizada por dois grandes grupos: as empresas (maioritariamente privadas) e o Estado, incluindo o ensino superior (maioritariamente público). Como se pode verificar na figura, o aumento na despesa de I&D a partir de 2015 deve-se ao sector empresarial, uma vez que a despesa no outro grupo tem-se mantido em valores estáveis e mesmo com uma ligeira diminuição nos anos mais recentes.

Despesa em Investigação e Desenvolvimento (I&D)


Desde 1997 as empresas têm acesso a um mecanismo de Estado, o Sistema de Incentivos Fiscais à I&D Empresarial (SIFIDE), de apoio ao seu esforço em I&D através da dedução à coleta do IRC. Este incentivo permite abater, em algumas condições, até 85% do montante de investimento das empresas em I&D no valor de imposto a pagar em IRC. De acordo com a informação disponibilizada pela Agência Nacional de Inovação (ANI), tem-se verificado desde 2015 um aumento no montante de investimento I&D declarado pelas empresas para o SIFIDE.

Em anos anteriores a 2015, o investimento I&D declarado era aproximadamente metade da despesa de I&D reportado pelas empresas no Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional (IPCTN) à Direção Geral de Estatísticas da Educação e da Ciência (DGEEC). Nos últimos anos o investimento tem sido quase 90% da despesa! Consequentemente, têm-se verificado um aumento exponencial na dedução em IRC que, em 2020, último ano em que a ANI reporta o resultado completo da avaliação de todas as candidaturas, é quase igual à componente de Orçamento de Estado (OE) desse ano para I&D com fundos nacionais.

Ou seja, o que o Estado gasta em receitas de impostos para I&D foi quase o mesmo que o Estado não cobrou em imposto com o SIFIDE. Se considerarmos que, após 2020, o OE para I&D com fundos nacionais tem vindo a diminuir em percentagem do PIB, e o valor de investimento declarado pelas empresas aumentou quase 20%, é muito expectável que a dedução em IRC venha mesmo a ultrapassar a dotação orçamental! Possivelmente, foi por esta e por outras razões que, já em 2023, foi aprovada nova legislação que altera as regras de funcionamento do SIFIDE...

O aumento da despesa em I&D do setor empresarial após 2015 apresenta, aliás, algumas curiosidades. Em 2015, de acordo com o IPCTN, 56% da despesa de I&D era com Recursos Humanos (RH), 29% com outras despesas e 15% com instalações e equipamentos de I&D. Em 2021, a classificação da despesa era de 54% em RH, 37% com outras despesas e 9% com instalações e equipamentos. Isto parece indicar que o aumento da atividade de I&D nas empresas não é acompanhado de igual modo pelo aumento de investimento em investigadores e laboratórios de I&D. É difícil perceber porquê...

Em termos de RH nas empresas, entre 2015 e 2021 a percentagem de doutorados em Equivalente a Tempo Integral (ETI) tem oscilado entre 5% a 6% de todos os investigadores. Em 2021, os 1.445 ETI de investigadores doutorados nas empresas ainda são inferiores aos 1.535 ETI de investigadores sem qualquer curso superior. Nesse mesmo ano, a larga maioria dos investigadores das empresas tinha licenciatura (50% do total) ou mestrado (32%).

Comparativamente, no sector Estado e ensino superior, em 2021 existiam 16.556 ETI de investigadores doutorados (54% do total), os mestrados correspondiam a 37%, os licenciados a 9% – e eram residuais os investigadores com menores níveis de formação.

(Ressalve-se desta análise, cujos resultados podem levantar dúvidas sobre a capacidade da maioria das empresas realizarem a I&D que declaram à ANI, que existem, no entanto, empresas com elevada qualificação dos seus recursos humanos. Por exemplo, o Grupo BIAL – o qual, segundo o IPCTN, foi a empresa que apresentou o valor mais elevado de despesa de I&D em 2021 – dispõem de quase 40% de ETI doutorados nos seus recursos humanos de I&D)

Em conclusão, é necessário mais investimento para se atingir meta de 3% do PIB em despesas de I&D em 2030. Essa meta foi estabelecida como sendo 1% em despesa pública (Estado e ensino superior) – atualmente está em 0,61%; e 2% em despesa privada (empresas) – atualmente é de 1,08%... curiosidades acima mencionadas à parte.

Para tal é necessário reforçar o Orçamento do Estado de I&D que, em 2023, correspondeu a 0,73% do PIB, mas onde os fundos nacionais representavam apenas 0,33%. Isto significa que mais de metade do OE de I&D está baseado em fundos europeus e, assim, sujeito as regras, orientações e eventuais cortes de Bruxelas – e não a estratégias nacionais de I&D.

Também é necessário monitorizar, e continuamente rever, os mecanismos do Estado como o SIFIDE, de modo a assegurar que os incentivos orientam efetivamente as empresas para criar condições internas para atividade de I&D. Se assim não for, esses incentivos produzirão muito menos ciência do que é suposto e, pior, reduzirão excessivamente a receita de impostos necessária para o reforço dos fundos nacionais do OE da I&D.

Jorge R. Costa é Vice-reitor do ISCTE e um dos coordenadores do livro “O Futuro da Ciência e da Universidade”