Projetos Expresso

“Vamos conseguir recuperar até ao final do ano todo este atraso que tivemos por conta da pandemia”

Projetos Expresso. Victor Herdeiro, presidente da Administração Central dos Sistemas de Saúde, adianta, em entrevista, que já foram realizadas mais consultas até março deste ano do que no período homólogo. À sexta-feira, o “Mais Saúde, Mais Europa” destaca o assunto da semana numa iniciativa do Expresso com apoio da Apifarma

Recuperar a atividade assistencial e a sustentabilidade e financiamento estão entre os grandes desafios para o SNS identificados por Victor Herdeiro
José Fernandes

Francisco de Almeida Fernandes

Os efeitos negativos da covid-19 vão além do número de casos de infeção e refletem-se, também, na prestação de cuidados assistenciais no Serviço Nacional de Saúde (SNS). De acordo com o Portal da Transparência do Ministério da Saúde, em 2020 foram realizadas menos 151 mil cirurgias (programas, urgentes, de ambulatório e convencionais) do que em 2019. Verificou-se a mesma tendência nas primeiras consultas – menos 584 mil – e consultas subsequentes – menos 726 mil. Contudo, a recuperação do tempo perdido tem tido resultados positivos, diz Victor Herdeiro em entrevista ao Expresso. O presidente da Administração Central dos Serviços de Saúde (ACSS) falou com o semanário sobre os impactos da pandemia, a sustentabilidade do SNS e a digitalização do sector.

Esta entrevista está integrada no projeto “Mais Saúde, Mais Europa”, que continua a acompanhar em permanência a atividade da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia na área da saúde com dois artigos semanais. À segunda-feira, reunimos os principais eventos e, à sexta-feira, fazemos um resumo dos momentos-chave da semana. A iniciativa do Expresso com o apoio da Apifarma promove ainda o debate com a realização do evento “Cancro: Cada Dia Conta”, a 26 de maio.

Assume o cargo de presidente da ACSS em pleno período de pandemia. Que desafios tem pela frente?

É um desafio muito grande. Temos, neste primeiro momento, um desafio que é com os hospitais e com as Administrações Regionais de Saúde (ARS) para recuperar muita da atividade assistencial que, devido à pandemia, esteve abaixo do que é o normal. As pessoas também procuraram menos o sistema de saúde, mas temos a noção que é preciso recuperar as consultas, as cirurgias, toda a atividade cirúrgica e, também, toda a atividade que tem a ver com rastreios, que é muito importante e que o Ministério da Saúde e, muito em particular, a senhora ministra está a dar uma importância grande a todas estas questões assistenciais. Depois temos, naturalmente, os desafios que têm a ver com a sustentabilidade e financiamento do sistema de saúde.

Como está o Serviço Nacional de Saúde a recuperar o tempo perdido em consequência da covid-19?

Relativamente à recuperação da atividade assistencial, as notícias são boas. Temos um sistema de saúde muito resiliente e que está neste momento muito empenhado em recuperar este atraso devido à pandemia. Quando olhamos para os números das consultas nos cuidados de saúde primários, por exemplo, percebe-se bem que, de mês a mês, estamos a recuperar. Já estamos com mais consultas em março de 2021 do que tínhamos em março de 2020. Estamos com mais de 9,5 milhões de consultas médicas, enquanto em março do ano passado tínhamos perto de 8 milhões de consultas.

Este número é composto por consultas médicas presenciais e consultas médicas não presenciais, sendo que as consultas presenciais foram mais de 3 milhões e as consultas médicas não presenciais são pouco mais de 6 milhões.

Tendo em conta estes números em tendência positiva, até ao final do ano conseguimos recuperar todo o tempo perdido?

Sim, a minha convicção é essa. Vamos conseguir recuperar até ao final do ano, diria até um bocadinho antes, todo este atraso que tivemos por conta da pandemia. Isto, naturalmente, é um trabalho muito local, claro que a ACSS tem o seu papel que não poderia deixar de ser feito, mas está a ser feito com os hospitais e com os centros de saúde.

Qual pode ser o papel da tecnologia neste processo de recuperação? Devemos continuar a apostar na sua utilização ou a experiência vivida neste último ano mostra que esse não é o caminho?

Não, pelo contrário. A pandemia - não só na saúde, mas também no trabalho - acelerou a digitalização, diria que acelerou numa década. E há aqui lições aprendidas, mas vamos ter que organizar este novo normal.

Relativamente à questão da saúde e do avanço que, por via da pandemia, houve em todas estas plataformas e das teleconsultas, acho que são avanços que vieram para ficar e não tenho dúvidas que o contacto doente-profissional de saúde é muito importante e muito relevante e insubstituível. Mas há contactos e contactos. Diria que há uma parte dos contactos em consulta que pode ser feita com sucesso por teleconsulta e é importante não confundir teleconsulta com contacto telefónico. Ambos têm o seu espaço, mas a teleconsulta deve, pelo menos, ter a imagem e será feita sempre que não houver necessidade do toque entre o profissional de saúde e o doente. Há imensos pedidos para os quais as pessoas têm que se deslocar ao hospital e que podem ser feitos sem essa ida ao hospital.

“Temos a noção que é preciso recuperar as consultas, as cirurgias, toda a atividade cirúrgica e, também, toda a atividade que tem a ver com rastreios, que é muito importante”

E está o sistema preparado para fazer o investimento necessário na digitalização?

A digitalização do sistema de saúde tem, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), um montante muito interessante, são €300 milhões para a transição digital da saúde. No fundo, temos boas experiências nesta área em vários pontos da rede do país, agora o desafio é dar condições, sobretudo a nível de infraestrutura digital, para que essa transição digital se opere e isso é uma ambição nossa, mas também um objetivo dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde.

José Fernandes

Como coordenadores da implementação do PRR na área da saúde, vamos ter aqui um papel muito importante de coordenação na implementação da transição digital.

A propósito do PRR, nas últimas semanas temos ouvido preocupações dos administradores hospitalares sobre a possibilidade de regressar a um modelo centralizado que retire autonomia aos hospitais. Parece-lhe uma preocupação justificada?

Relativamente ao PRR eu vejo que, do ponto de vista das reformas, estamos a falar de mais de €1,3 mil milhões e as reformas são muitas. Honestamente não vejo que, do que conheço do PRR – e conheço razoavelmente bem, diria –, seja um assunto central. Sabemos que esse tipo de reformas não se faz por decreto, fazem-se com os hospitais e Administrações Regionais quando percebem que há vantagem nisso.

Se reparamos, no passado, e estamos a falar nas metrópoles, fez-se alguma centralização em algumas especialidades médicas e cirúrgicas, mas nessas situações as coisas correram bem e parece-me que estão estáveis. Vejo a questão de haver mais uma ou outra especialidade em que se possa fazer isso como qualquer coisa que vai sair também das ARS e dos próprios hospitais, não vejo que seja uma questão de imposição do Ministério da Saúde. Muito pelo contrário, o que penso que é o objetivo desta forma de coordenação vai mais na linha de maior autonomia e maior responsabilização.

“O nosso modelo de financiamento tem coisas excelentes e extraordinárias, mas como todos os modelos precisa de, numa perspetiva de melhoria contínua, que olhemos para ele e o adaptemos à realidade”

Cada vez mais, e existem vários estudos que o defendem, falamos na possibilidade de alterar o modelo de reembolso aos hospitais, passando do reembolso com base na quantidade de doentes atendidos para um modelo em que se valoriza a eficácia, o chamado Valued-Based Healthcare. Será uma hipótese viável para o SNS?

Diria que o futuro passará por aí, mas com os pés bem assentes na terra o desafio neste momento é fazer do modelo atual coerente, de forma que seja catalisador da eficiência dos hospitais. Isto é, um modelo de financiamento que consiga dar às administrações hospitalares a capacidade de gerir o hospital e procurar eficiências e, no fundo, diria que esse é o primeiro passo.

O nosso modelo de financiamento tem coisas excelentes e extraordinárias, mas como todos os modelos precisa de, numa perspetiva de melhoria contínua, que olhemos para ele e o adaptemos à realidade. A questão do financiamento com base em resultados é o caminho que vislumbramos todos. Pagar não em função do número de episódios, mas que o pagamento tenha que ver com o valor que aquela intervenção teve para aquela pessoa em concreto. Aliás, uma das coisas que se vislumbra é que o próprio doente seja um fator na avaliação desse valor que é criado, portanto diria que vamos seguramente caminhar para aí, porque é um caminho que todos estamos a ver e não é só Portugal. Agora, se me perguntar se é algo que vai acontecer até daqui a 12 meses, não vai.

Mas para aplicar este modelo é inevitável medir resultados e, para isso, precisamos de muitos dados. A tecnologia será, por defeito, um aliado nesta missão. Está o sistema a investir nesse sentido?

Em toda esta questão do Value-Based Healthcare, do financiamento e da medicina de precisão, acaba por ser muito importante a questão dos dados. Estas tendências são muito globais e eu diria que o big data, um sítio onde estão todos os dados da saúde, é também um desafio que tem variadíssimas vantagens, mas que é desde logo um desafio devido à lei da privacidade dos dados. Mas hoje é possível utilizar estes dados todos com vantagem para a investigação e para o financiamento, sem pôr em causa a privacidade dos dados. Vejo esta questão dos dados exatamente com estas duas grandes utilidades imediatas: para a investigação que se vai fazer no âmbito de uma medicina que é cada vez mais personalizada e mais de precisão e os dados aí são importantes, ou seja, estudar esses dados, mas também para a questão de financiamento. Para podermos construir modelos de financiamento, estes dados sobre a saúde e sobre as doenças dos portugueses é muito relevante.

€300 milhões

é o montante previsto pelo Plano de Recuperação e Resiliência para a transição digital da saúde. O PRR prevê, também, reformas no sistema de saúde avaliadas em €1,3 mil milhões em áreas como a saúde mental, capacitação dos cuidados de saúde primários ou reforma do modelo de coordenação dos hospitais públicos