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Política

“A solidariedade coletiva só funciona na tragédia, no dia a dia é uns a ver e outros a sofrer”: grande entrevista a Jorge Sampaio, em 2018

Uma das últimas grandes entrevistas de Jorge Sampaio foi publicada na revista do Expresso de 20 de janeiro de 2018. Nela, o ex-Presidente falou de tudo - de política, de Europa, do papel de Portugal no mundo, de António Costa, do PS, da necessidade de reformas, da sua doença e até da morte. Republicamo-la agora

O antigo Presidente da República na Casa do Regalo, em Lisboa, onde tem o seu gabinete
António Pedro Ferreira

Entra de gola alta, sapatos confortáveis e vestindo um sorriso na sala onde passaremos o fim de uma tarde fria de janeiro. Jorge Sampaio, 78 anos, Presidente da República de 1996 a 2006, recebeu o Expresso no seu gabinete, na Casa do Regalo, em Lisboa, cidade de que foi presidente da Câmara a partir de 1989, ano em que foi eleito secretário-geral do Partido Socialista - e uma vintena de anos depois do início da sua carreira política, na candidatura, em 1969, às eleições para a Assembleia Nacional, nas listas da CDE. Uma carreira intensa de intervenção cívica, que mantém.

Como vê hoje o país?

Tenho uma visão otimista. Por uma razão fundamental: quem tinha 34 anos no 25 de Abril, uma vida profissional feita e estava habituado à ditadura, não concebia que passados estes anos pudéssemos estar onde estamos. O que era a mortalidade infantil, a incapacidade de saber ler e escrever, a pobreza generalizada, a agricultura de morte... A minha visão é sempre completada com um olhar para de onde viemos, para onde estamos e para onde precisamos de avançar. O salto que se deu! Eu pertenço a uma das últimas gerações do antes do 25 de Abril, as outras já não estão cá, e isso dá uma perspetiva grande e um redobrado otimismo. E pensar que agora, acabada a descolonização e tendo relações normais com as ex-colónias, fazendo parte da União Europeia e das organizações multilaterais, tendo tido manifestos sucessos internacionais em 2017 - basta relembrar Guterres e Centeno -, há razões para esse otimismo. Mas há razões para ter moderação nesse otimismo, que resultam da circunstância de o mundo ser profundamente diferente, de os mecanismos da democracia representativa estarem em crise, de os extremismos terem aumentado, da contradição entre uma sociedade internacional multilateralmente organizada e correr-se o risco de passar para zonas de conflito muito determinadas, mesmo dentro do contexto geral de uma paz mais armada; a fome, as alterações climáticas e a sua negação, Donald Trump e o trumpismo, aparentemente florescente, as guerras religiosas, ou não, no Médio Oriente, com o que isso implica para a Europa e para aquela zona do globo tão decisiva para a paz e o desenvolvimento geral do mundo... São motivos de grande e forte preocupação.

O que o preocupa são riscos externos. Significa que considera que somos pequenos para influenciar e vulneráveis para sofrer?

Não. Nós estamos inseridos no mundo, não há soluções taxativamente apenas portuguesas e há riscos internacionais grandes que podem afetar-nos, não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Do ponto de vista interno, preocupa-me saber até onde vai a nossa capacidade reformista e de inserirmos o nosso desenvolvimento económico e social num contexto mais vasto. Qual é o nosso lugar no meio disto tudo? Que reivindicação fazemos em relação ao nosso lugar na Europa? Qual é a nossa posição em relação à ciência? E que capacidade teremos para combater a pobreza? A coisa que mais me aflige é percebermos que os benefícios da globalização e do crescimento são tão desigualmente distribuídos e que essa desigualdade não vai terminar.

"Há na sociedade portuguesa a ideia de que na política estão uns malandros que não devem ganhar coisa nenhuma, que se ganharem o salário mínimo nacional já chega”

Qual é o nosso caminho?

O desenvolvimento interno é um caminho apertado, dependemos de uma economia que precisa de se transformar, passando da economia das rendas - e já se deu um grande salto nesse sentido - para uma economia de exportações. E sabermos qual é a capacidade de atrairmos capitais estrangeiros, sem prejuízo de conseguirmos - eu volto a este tema que sempre foi um tema meu, não no sentido do isolacionismo, pelo contrário - desenvolver polos de desenvolvimento estratégico nacional, que se insiram num desenvolvimento internacional e que não nos façam perder coisas estrategicamente importantes, como algumas que já foram à vida - o caso mais flagrante é o da REN e dos aeroportos, para não falar noutros, e obviamente a banca.

A banca?