“Este é o tempo do luto”. Uma frase ouvida repetidamente nos últimos dias. De uns por respeito, de outros como forma de evitar responder a perguntas, de outros por pudor. O tempo do luto é o das famílias e amigos das vítimas. E vai ser longo. Não se esgota nos dias decretados, nem na vontade dos políticos. Talvez só quem tenha perdido familiares e amigos em tragédias semelhantes saiba qual é o tempo, por vezes infinito do luto. Não se use, pois, o tempo do luto para adiar esclarecimentos de que precisamos.
Carlos Moedas surpreendeu na entrevista dada à SIC. Pela forma e pelo conteúdo. Uma forma com alguma teatralidade, ensaiada e a saber a pouco sincera. Mas essa é uma apreciação subjetiva, com pouco valor ou relevância. Grave foi o conteúdo. Poderia haver uma parte que não o fosse, mas todas revelaram uma forma de estar e ser na política que deve servir de exemplo para todos. Pelo que não pode acontecer, pelo que não queremos que aconteça. Seja qual for o partido, da esquerda à direita, está ali o que não pode estar na política.
Ninguém com responsabilidade política quer viver uma tragédia destas. E, por isso, Carlos Moedas tem a minha solidariedade. Não há, nem deve haver, cartilha para entrevistas num contexto como este. Mas há mínimos de respeito por todos que deviam ser respeitados. E aí cessa a minha empatia.
De tudo o que foi dito, chocou-me sobretudo o uso da dor dos que choram a morte do guarda-freio. Usou-o para desviar atenções dos erros que estarão, certamente, na origem deste horrível acidente. Apresentou-o como um herói, quando ele foi uma vítima. Uma vítima que corporiza os alertas continuados dos trabalhadores da Carris. Não foi uma homenagem, foi uma utilização infeliz, a tentativa de criar um mártir, iludindo que este homem, cumprindo a sua função, sucumbiu à incompetência de alguém.
Foi uma entrevista em que se tentou iludir, rejeitando o óbvio. João Miguel Tavares, no jornal Público, explicou o que todos vemos, apesar de Carlos Moedas não querer que vejamos. Esta não foi uma catástrofe natural. Foi uma falha numa infraestrutura, sobre a qual há deveres de fiscalização, manutenção e reparação. Ou teria sido boicote, o que já foi descartado, ou foi um erro humano. É, pois, um ataque à inteligência coletiva afirmar-se que não houve erro. Honrar as vítimas é ajudar a perceber o que falhou, não para encontrar culpados, mas para que não volte a acontecer.
Foi uma entrevista em que, num cenário tão terrível, se atiraram números de engodo. Mascararam-se valores de reforço de investimento, confundindo aumentos que se relacionam com a aquisição de autocarros com um alegado reforço na manutenção. Não sei, não sabemos, se um aumento de 4% na manutenção é suficiente. Mas percebemos que é mais importante saber se os processos de manutenção estavam bem selecionados, eram eficazes ou não. Não é o momento do autoelogio, mostrando números que em nada elucidam e em tudo iludem. Não é o tempo da campanha eleitoral e da prestação de contas de mandato. É o tempo do esclarecimento cabal.
Foi uma entrevista de fuga. Clara de Sousa fez as perguntas que nos inquietam a todos. A mim, que fui utilizador assíduo do Elevador do Lavra, assustou-me o encerramento de todos os elevadores naquela noite. Não percebi, e não estou esclarecido sobre as razões. Foi um ato simbólico ou uma admissão preocupante de que o Presidente da Câmara não fazia a mínima ideia da segurança destes equipamentos? E o que nos diz isto sobre a sua responsabilidade? A todas as perguntas pertinentes fugiu, evadindo-se para a vitimização ou para a repetição dos seus feitos ao longo do mandato, todos eles irrelevantes e incompatíveis com a realidade vivida pelos habitantes da cidade. Outro exemplo. De que serve comparar as taxas de utilização de 2025 com as de 2019 se nada sabemos sobre efeitos cumulativos e reforços de manutenção que foram ou não feitos nestes períodos?
Foi uma entrevista que tentou construir uma nova versão do que se entende por responsabilidade. Carlos Moedas estabeleceu as suas próprias balizas para o que pode ser o escrutínio público da sua atividade. Não nos cabe a nós, eleitores, ou aos jornalistas e técnicos dizer nada sobre a sua atuação, porque o Presidente já decidiu que só teria responsabilidade se tivesse alguma informação que lhe tivesse chegado às mãos. Está criado um novo modelo de liderança municipal: o conselho de Carlos Moedas aos presidentes de câmara é simples – não queiram obter informação sobre o que de vós depende, porque assim poderão sempre enjeitar responsabilidade. É evidente que não acompanhar processos, não obter informação, é também uma opção política pela qual se deve responder.
Foi uma entrevista que apostou num chavão vazio. “Daqui ninguém sai” é uma frase que mistura uma apresentação de si próprio como alguém corajoso que não abandona um barco a afundar com uma afirmação de que não se tiram ilações sobre as suas próprias contradições, quando confrontado com o que disse sobre Fernando Medina. Se sai ou não sai, se o seu Vice-Presidente, que sairá sempre a 12 de outubro, se disponibiliza como testa-de-ferro da responsabilidade, se mantém ou não o responsável pela Carris, nada disso me importa. Importa sim que o mesmo Presidente que andou a vociferar chavões legitimadores da xenofobia crescente na cidade não perceba que as “perceções de insegurança” que alimentou não têm qualquer veracidade, ao contrário da insegurança que se instalou na relação dos lisboetas e visitantes de Lisboa com os equipamentos e infraestruturas da cidade.
Foi uma entrevista de desfaçatez e indignidade política. Quem se refugiou no colo do Primeiro-Ministro, na inusitada participação num Conselho de Ministros onde nada se decidiu de relevante para este caso ou para a cidade de Lisboa, para aparecer no final a pedir que não houvesse escrutínio político, usou esta entrevista para campanha eleitoral, querendo mostrar méritos e atacando adversários de forma vil. Foi, até agora, o caso mais claro e descarado de aproveitamento político deste horrível acidente. É público que sou amicíssimo da Alexandra Leitão. Como em qualquer boa amizade, já discutimos muito, por vezes de forma acesa, aspetos da vida política em que não estamos de acordo. Tenho, por isso, um conhecimento das suas virtudes e defeitos que outros não terão. Não interessam as suas características pessoais para o que Carlos Moedas tentou fazer. Interessa a sua personalidade política. Goste-se ou não se goste de Alexandra Leitão, é consensual a sua liberdade na palavra. Não tem papas na língua e ouvimo-la várias vezes criticar o seu próprio partido, camaradas de partido e opções políticas de governos e municípios socialistas. A sua racionalidade está associada a uma capacidade de argumentação sobejamente alicerçada em factos. Serve isto para dizer que Carlos Moedas pode abominar Alexandra Leitão, temê-la como adversária, mas não a pode acusar de precisar de se servir de outros para dizer o que pensa. É que, ao contrário de Carlos Moedas, a Alexandra não se esconde e até deu a cara em momentos difíceis em que quem liderava hesitava e titubeava. Talvez Carlos Moedas tenha apenas confessado a sua própria forma de estar na política, projetando-a numa mulher que em tudo diverge do seu perfil.
Chocou-nos que quem tenha repetido que não quer um escrutínio político tenha usado esta entrevista para um ignóbil ataque político, ainda por cima engalanado com um ataque de carácter. Triste, mas infelizmente revelador.
Há um padrão neste mandato da Câmara de Lisboa: propaganda nas redes sociais e vitimização quando algo não corre bem. Acontece que, desta vez, numa tragédia destas dimensões, não há dúvida sobre quem são as vítimas. O Presidente da Câmara não será culpado, pode ou não ter responsabilidade, mas não é, certamente, vítima de nada. E, por isso, a vitimização ganha um significado mais expressivo. Transforma-se em indignidade.