Opinião

Brasil: entre Lula e Bolsonaro, um país refém

A verdade é que esta lógica de “nós contra eles” corrói a democracia brasileira. Bolsonaro e Lula representam, cada um à sua maneira, uma captura da política por projetos pessoais e messiânicos

“Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que beleza.” O verso imortalizado por Jorge Ben Jor ressoa hoje como ironia amarga quando confrontado com a realidade brasileira — uma realidade que não é apenas atual, mas que se arrasta há décadas.

O país que se proclama tropical e divino continua a ser uma nação de promessas traídas, onde as cores vibrantes da paisagem se misturam com as manchas da corrupção, das crises institucionais e de lideranças incapazes de corresponder à grandeza de um território imenso e da sua gente.

Mais uma vez, o Brasil encontra-se dividido entre dois polos irreconciliáveis: de um lado, Jair Bolsonaro, com o seu movimento de pulsão populista e messiânica; do outro, Lula da Silva, não apenas o atual Presidente, condenado em dois tribunais e com pena cumprida, mas sobretudo o grande mestre de uma engrenagem de corrupção que, durante anos, corroeu as instituições, destruiu a confiança política dos brasileiros e manchou o próprio regime democrático.

A polarização assim construída não oferece saídas: de um lado o delírio, do outro a decadência.

O Supremo Tribunal Federal condenou Bolsonaro num processo que, pela sua gravidade, não pode ser tomado de ânimo leve. A acusação de tentativa de golpe de Estado é de uma dimensão histórica e coloca qualquer democracia perante a pergunta essencial: será a justiça suficientemente forte para alcançar todos, grandes e pequenos? Neste ponto, não há espaço para relativizar.

A justiça, no seu funcionamento processual, aplicou-se. Houve contraditório, houve debate, houve divergências — como se viu no voto isolado de Luiz Fux — e houve decisão. Quando um ex-Presidente da República é condenado, a mensagem é inequívoca: a lei não distingue entre governados e governantes.

Contudo, o Brasil é um país onde a linha entre justiça e política raramente se distingue. O julgamento de Bolsonaro é também um julgamento sobre o próprio sistema judicial e sobre as ligações históricas entre magistratura e política. Basta olhar para os cinco juízes que participaram neste processo: Alexandre de Moraes, antigo ministro da Justiça de Temer, indicado por este e oriundo da política paulista, já antes secretário de Segurança Pública; Flávio Dino, até há pouco tempo ministro da Justiça de Lula e antes governador do Maranhão, com evidentes ligações ao Partido dos Trabalhadores (PT) e indicado pelo próprio Lula; Cármen Lúcia, indicada por Lula em 2006, com percurso reconhecido no Ministério Público, mas inclinação jurisprudencial próxima da esquerda; Cristiano Zanin, advogado pessoal de Lula na Operação Lava Jato, cuja nomeação, em 2023, foi uma das mais polémicas da história do Supremo; e Luiz Fux, o único voto dissonante, nomeado por Dilma Rousseff, Presidente de um Governo PT e ex-ministra de Lula.

Não se trata de pôr em causa a legitimidade das decisões judiciais, mas de reconhecer que a politização da justiça é marca do Brasil contemporâneo e, para quem conhece a política brasileira, algo inegável.

O caso de Zanin é paradigmático: foi o defensor de Lula quando este foi condenado em Curitiba pelo juiz Sérgio Moro, no processo Lava Jato — uma investigação que revelou o maior escândalo de corrupção da história do país, com ramificações no Governo, em empresas estatais e no financiamento de partidos, em especial o PT. A sua nomeação para o Supremo pelo próprio cliente que antes defendera reforça a perceção de promiscuidade entre política e justiça. Moraes, por sua vez, mostra bem o trânsito entre ministérios, secretarias e tribunais, um trânsito que desvirtua a ideia de independência.

É precisamente aqui que o dilema brasileiro se agrava. Bolsonaro foi, de facto, um Presidente que gerou atrito social, alimentou divisões religiosas e ideológicas e cultivou um estilo violento de retórica política. O bolsonarismo é um fenómeno que mistura messianismo evangélico, nacionalismo exacerbado e desconfiança perante as instituições. Mas do outro lado não está um campo imaculado.

O PT, desde 2002, carregou consigo não apenas políticas sociais relevantes, mas também o peso de uma máquina de corrupção institucionalizada. A Lava Jato não foi invenção, foi realidade. E Lula, ainda que recuperado pela narrativa da esquerda internacional como símbolo de resistência, foi condenado e cumpriu prisão.

Recorde-se o episódio em que Rousseff tentou nomear Lula ministro apenas para lhe conceder foro privilegiado, transferindo o seu processo para o Supremo onde ele próprio havia indicado juízes. Felizmente, essa tentativa de subverter a justiça não vingou. Recorde-se também o modo como o STF, anos mais tarde, anulou as condenações de Lula por questões processuais, permitindo-lhe regressar à disputa eleitoral em 2022. Houve quem visse nesse gesto não só a aplicação técnica da lei como uma manobra para devolver ao PT a possibilidade de disputar o poder contra Bolsonaro.

É inevitável, portanto, reconhecer que ambos os campos vivem de narrativas de vitimização política. Se antes se dizia que Moro instrumentalizou a justiça para impedir a eleição de Lula em 2018, agora muitos afirmam que a condenação de Bolsonaro serve para afastá-lo das urnas em 2026. O resultado é uma desconfiança generalizada: os brasileiros não sabem se a justiça julga em nome da lei ou em nome da política.

A verdade é que esta lógica de “nós contra eles” corrói a democracia brasileira. Bolsonaro e Lula representam, cada um à sua maneira, uma captura da política por projetos pessoais e messiânicos. Ambos cultivaram redes de apoio que não hesitam em pôr em causa instituições quando lhes são desfavoráveis: veja-se a amizade de Bolsonaro com Trump. Ambos alimentaram divisões sociais profundas. E ambos têm atrás de si histórias de compromissos obscuros, seja no financiamento político, seja nas alianças internacionais.

Lula é hoje um Presidente que critica a Europa, relativiza a agressão russa à Ucrânia, aproxima-se da China e da Venezuela, e até foi acusado de beneficiar de financiamento externo para se manter no poder. Já Bolsonaro radicalizou a direita e abriu espaço para discursos autoritários e violentos.

O Brasil precisa, portanto, de mais do que a alternância entre dois projetos falhados. Precisa de uma nova liderança, capaz de se apresentar sem estar prisioneira de um passado de corrupção ou de uma retórica de confronto. Alguém que represente modernidade, cosmopolitismo e visão de futuro. O atual governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, com experiência sólida à frente de um dos estados mais ricos e desenvolvidos, surge como exemplo de uma geração que pode romper com esta lógica binária.

Nos últimos trinta anos, a cadeira presidencial conheceu escândalos e quedas: Fernando Collor de Mello, eleito como salvador, foi destituído; Dilma Rousseff, eleita com a promessa de continuidade social, caiu pelo mesmo instrumento; Lula esteve preso; Bolsonaro é agora condenado. Apenas Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2003, conseguiu preservar o cargo com dignidade e respeito institucional. Este contraste mostra como a política brasileira falhou em criar continuidade, estabilidade e credibilidade.

A aquarela do Brasil, afinal, continua inacabada. Um país de cores exuberantes, mas de instituições frágeis. A condenação de Bolsonaro é sinal de que a justiça pode atingir até os mais poderosos, mas também um lembrete de que o sistema está corroído pela interferência recíproca entre política e tribunais.

O futuro brasileiro não pode continuar refém de um duelo entre dois fantasmas do passado. Precisa de uma nova narrativa, de uma nova paleta de cores, de uma liderança que não pinte a justiça com as tintas da política nem a política com as manchas da impunidade. Só assim a música poderá voltar a soar como promessa e não como ironia.