Opinião

O campo alentejano em bolandas

Voltámos a assistir a uma concentração da exploração e posse da terra que não acontecia desde o tempo das Unidades Colectivas de Produção. Se esta concentração aconteceu por via política, a actual dá-se por via financeira

O típico perfil do campo alentejano tem vindo a sofrer profundas alterações a uma velocidade que só tem paralelo no PREC e dois dos mais recentes protagonistas dessa mudança foram o Fundo de Investimento da Igreja Mórmon e o Fundo de Pensões dos Professores do Canadá.

Mas, apertados com critérios ESG (ambiental, social e de governança), também grandes merceeiros à procura de reabilitação social e de legitimação ambiental, operadores industriais em processo de greenwashing disfarçado de integração vertical, especuladores avulso a canalizarem excedentes de caixa, todos cá pelo campo alentejano vão aparecendo para privilegiarem a massificação em detrimento do terroir.

E isto, na exacta medida em que recua a antiga e íntima ligação que famílias de agricultores mantinham à terra e, como consequência, a têm que ir entregando para passar de vivida a explorada, num impessoal processo de financeirização que, depois de os descapitalizar, acaba a empurrar os agricultores para um salário, uma reforma ou uma renda.

Pelo conceito, pelo aporte de tecnologia, mas sobretudo pela afectação de meios financeiros numa escala nunca antes vista por estas paragens, voltámos a assistir a uma concentração da exploração e posse da terra que não acontecia desde o tempo das Unidades Colectivas de Produção (UCP). Se esta concentração aconteceu por via política, a actual dá-se por via financeira mas carece do enquadramento político e da responsabilidade social a que a posse da terra sempre obrigou.

Historicamente, na pessoa do agricultor e, no período da reforma agrária, até mesmo na do revolucionário na chefia das UCP, sempre alguém por aqui respondeu pela terra e a representou mas agora, com o advento destes novos investimentos a insistirem na ficção de a considerarem uma mera mercadoria, aquela antiga relação passou a ser com marcas e com os difusos rostos dos seus funcionários. À semelhança do período da reforma agrária com as ocupações selvagens de propriedades, estamos agora cá pelo campo alentejano a chegar então outra vez ao mesmo resultado: agricultores a ser removidos da paisagem e as comunidades rurais em acelerado processo de proletarização sem que, desta vez, seja, sequer, ilegal!

Quem é que se deixa surpreender por continuar a arder o interior quando, mais uma vez no primeiro trimestre deste ano, o número de insolvências apresentadas é liderado por distritos como Portalegre, Castelo Branco, Beja, Évora e Vila Real? Criando condições para acentuar o despovoamento, tem sido persistente em Portugal o crescimento do número de insolvências no sector da Caça, Pescas e Agricultura e, até final de julho de 2025, por comparação com igual período de 2024, chegou aquele aumento a 65%, sendo que, segundo a Iberinform, no distrito de Portalegre durante o primeiro trimestre deste ano atingiu mesmo 200%. Segundo conclusões apresentadas pelo INE do seu último Inquérito às Explorações Agrícolas, não há dúvidas em relação à aceleração do ritmo de abandonos da actividade ao mesmo tempo que aumenta a mão-de-obra assalariada.

Se a quase aniquilação dos agricultores alentejanos na altura da reforma agrária comunista permitiu a instalação durante décadas do predomínio político de um, já então, anacrónico e esclerosado extremismo revolucionário de esquerda, como sempre acontece em processos de desestruturação social em que mingua o grande estabilizador que é uma robusta classe média, também agora a crescente substituição dos agricultores para permitir a chegada de outro totalitarismo, desta vez financeiro, pela instalação das multinacionais e dos fundos, está a coincidir com mais um desequilíbrio político nesta consolidação de novo populismo, igualmente importado, mas de sinal contrário ao do PREC.

Provando que os extremos para além de se tocarem se podem mesmo confundir, muitos dos antigos revolucionários de esquerda que foram protagonistas locais do alienado radicalismo proletário reconhecem agora a mesma receita de outrora nos apelos emocionais aos mais básicos instintos a potenciarem o sectarismo descabelado e estão por isso muito facilmente a deixar-se converter em fervorosos apoiantes e a fazer medrar a incivil e ultramontana extrema direita que por cá vai assentando arraiais.

Claro que é bem capaz de ser mais cómodo adoptar o comportamento da ‘manada’ e deixar que o sopro de ar destes estranhos tempos nos faça de novo tombar para o extremo da moda.

Mas, em vez do desencanto e da simples contenção de danos, o que é decisivo, embora possa voltar a ser perigoso, é a coragem do exercício de uma cidadania activa em prol de um desenvolvimento equilibrado e conciliador das práticas económicas, ambientais, sociais e culturais.

Pela segunda vez em cinco décadas, volta por cá a caber aos resilientes não abdicar de ter opinião, derrotar a demagogia e defender um modo de vida.