Geração E

Perda gestacional e o luto do grito silencioso

Entre 10% a 15% das gravidezes de que se tem conhecimento acontece um aborto espontâneo. Neste panorama, o governo português teve o desplante de propor acabar com os míseros três dias de faltas justificadas previstas no Código de Trabalho. Caros deputados, o luto de uma perda gestacional não se faz num fim-de-semana prolongado

Entre 10% a 15% das gravidezes de que se tem conhecimento acontece um aborto espontâneo. Isto significa que cerca de 1 em cada 10 gravidezes, no mínimo, termina com um aborto espontâneo. Por muito que estes números mostrem que tal acontece a muita gente, são poucas as pessoas que falam publicamente sobre o seu próprio caso. Há vários fatores que contribuem para isto, sendo um deles a privacidade, que é um direito da gestantes e do casal. No entanto, não se cria uma comunidade de representatividade. Aliás, muitas vezes só sabemos que alguém que nos é próximo passou por um aborto espontâneo de uma gravidez desejada quando também nos acontece a nós. Mesmo assim, grande parte destas confidências são-no feito com esse tom, com o de segredo, como se fosse algo a esconder. Desta forma, a perda gestacional continua um tabu, embora seja muito comum. Se por um lado não me surpreende, visto que até a menstruação ainda é tabu — embora já nem tanto como há umas décadas —, por outro lado entristece-me, porque não só não se está a criar representatividade, como não se está a dar a devida importância à necessidade de fazer o luto de uma perda gestacional de uma gravidez desejada, inclusive entre o poder governamental do nosso país.

Emilie Pine, no seu livro autobiográfico Notes to Self, fala da imensa solidão que se sente no processo de luta contra problemas de infertilidade, no aborto espontâneo e a morte fetal. Neste livro, a escritora fala dos fóruns de apoio online a que se juntou para poder partilhar os seus medos e ansiedades com pessoas também a passar por problema de fertilidade, mas também fala da primeira gravidez da sua irmã que terminou com um morte fetal já com o feto desenvolvido, devido a um problema de coração durante a gestação (descoberto após autópsia do nado-morto). Emilie relata o processo do parto e do luto, não só da sua irmã como da família nuclear. É incrivelmente pesado e bonito, pela união familiar que resulta de um trauma tão profundo. (Vou dar um spoiler para aliviar quem me lê: a irmã de Emilie volta a engravidar e tudo corre bem). Por duas vezes li o livro e por duas vezes chorei. Só quem passa por algo assim sabe a dor familiar que causa. Não desejaria tal coisa à pior pessoa do mundo.

É nesta dor, nesta perda gestacional do que poderia ter sido mas já não vai acontecer, neste silêncio que se dá o grito que ninguém ouve, mas quem está a fazer o luto sente-o por dentro, a correr nas veias: “como é que o mundo pode continuar à nossa volta, como se nada tivesse acontecido, depois de tão grande injustiça?”

Quando acontece uma perda gestacional de uma gravidez desejada, aquela mulher e aquela família, não perderam simplesmente um embrião ou um feto, perderam os sonhos acordados de um futuro que já não é possível da maravilhosa forma que tinham imaginado. O nome. As roupas. A decoração do quarto. As brincadeiras que iriam ter. Num estalar de dedos, um silêncio pesado se instala. Neste panorama, o governo português teve o desplante de propor acabar com os míseros três dias de faltas justificadas previstas no Código de Trabalho. Caros deputados, o luto de uma perda gestacional não se faz num fim-de-semana prolongado.

Neste contexto, como resposta à proposta referida do governo — que contraria o bom senso e estatísticas de perdas gestacionais —, a Ordem dos Psicólogos propõe aumentar para até 20 dias o período de ausência justificada no trabalho.

Mesmo olhando pela lente capitalista do Estado, retirar o direito ao luto com faltas justificadas é contraproducente, já que a rentabilidade de uma trabalhadora ou um trabalhador que tenha passado por uma perda gestacional no casal e não tenha feito o devido luto com acompanhamento psicológico será muito menor, comparando com alguém que fez o devido luto. No entanto, não devemos olhar para a questão como sendo um problema de rentabilidade dos trabalhadores, mas antes como empatia humana, como o cuidado em relação ao outro. Um país não é feito de capital, é feito de pessoas.

O processo de luto deve ser feito devidamente, com apoio psicológico e familiar. A solidão tem tendência para se instalar, especialmente quando não se havia contado ao círculo próximo de familiares e amigos. Na verdade, o costume de só se falar da gravidez depois dos três meses vem da realidade de se saber da probabilidade da gravidez ter um término espontâneo antes desse marco. No entanto, se não contarmos ao nosso círculo próximo da gravidez, onde vai estar o apoio nas primeiras semanas e na eventualidade de acontecer um aborto espontâneo? A gestante e, havendo, o seu parceiro ou parceira, não merecem apoio próximo de quem lhes é mais querido? Nenhuma mulher merece estar a dar gritos silenciosos, mascarados de um sorriso, no meio de amigos e familiares quem nem sabiam daquela gravidez desejada que se tornou numa dor.

Precisamos de mais comunidade, representatividade e menos tabus sociais. Precisamos de zelar mais pelas pessoas do que pelos costumes. Precisamos de apoio psicológico e empatia do Estado.

Ninguém merece ser obrigada a um luto de gritos silenciosos numa perda gestacional não acompanhada. E ninguém merece um governo que não apoie ao máximo as pessoas que lhe deram o poder de governar. Afinal, caros deputados, nasceram de onde? Lembrem-se disso.