A tragédia do Médio Oriente é que as vitórias militares quase nunca trazem segurança, mas apenas a semente da próxima guerra. Em nenhuma outra parte do mundo a procura de segurança produziu tão sistematicamente o seu contrário. Israel deveria sabê-lo melhor do que ninguém – muitas vezes como vítima, outras como agressor. Em 1948, lutou pela sobrevivência e encontrou um conflito permanente. Em 1967, expandiu fronteiras e colheu isolamento diplomático. Em 1982, avançou para se proteger, mas despertou a resistência do Hezbollah. Ao enfraquecer a Autoridade Palestiniana para inviabilizar dois Estados, acabou por entregar Gaza ao Hamas. As sucessivas e inaceitáveis violações dos direitos humanos na Palestina vieram depois interromper as negociações para uma normalização mais ampla das relações com os países da região, em particular com a Arábia Saudita, no quadro dos chamados Acordos de Abraão.
Agora, volta a querer garantir a sua segurança através de um ataque preventivo – um conceito pelo menos cinzento entre a legítima defesa e a agressão – ao Irão, arriscando abrir novos focos de tensão. O paradoxo repete-se. Cada gesto de defesa transforma-se no prelúdio do próximo conflito e aquilo que deveria funcionar como dissuasão, transforma-se numa escalada inexorável.
A madrugada de 13 de junho foi mais do que um ataque militar: foi a expressão calculada de uma estratégia de longo prazo. Netanyahu, hoje arquiteto de uma emergente ordem regional, respondeu ao 7 de outubro de forma implacável, desmontando parcialmente as estruturas do Hamas e do Hezbollah. Não depôs Bashar al-Assad, mas contribuiu para enfraquecer o regime sírio através de ataques cirúrgicos a arsenais iranianos, posições do Hezbollah e infraestruturas militares. Sempre que útil, manteve contactos indiretos com forças rebeldes, travando o avanço de Teerão na frente síria e, com Assad fragilizado, consolidou posições estratégicas nos Montes Golã e bloqueou o envio de armamento avançado para o Hezbollah. Ao mesmo tempo, contra os Houthis, outro dos aliados do Irão, adotou uma estratégia firme, travando ao mesmo tempo a abertura de uma nova frente no sul da Península Arábica.
Conseguiu, desta forma, aproveitar a decisão de Ali Khamenei, líder supremo do Irão, de confiar a segurança do país ao Eixo da Resistência, preparando a ofensiva há muito desejada. Atingir o coração do regime iraniano e as suas infraestruturas nucleares, recuperando a Doutrina Begin, com mais de quatro décadas. Se Osirak, no Iraque, foi o prólogo, Natanz surge agora como o epílogo. Mesmo que não se vislumbre um Irão secular depois deste conflito, a natureza dos alvos poderá contribuir para desarticular um regime que oprime o seu próprio povo desde 1979 – uma teocracia que transformou a fé em instrumento de poder e o caos em política externa.
Mas muito mudou desde então. Begin acreditava que a dissuasão passava por impedir ameaças concretas de se materializarem. Netanyahu, pelo contrário, transformou-a numa luta ontológica contra a própria ideia de ameaça, um combate interminável contra um inimigo que dificilmente será erradicado sem o envolvimento direto dos Estados Unidos. Já não se trata apenas de impedir que o Irão obtenha armas nucleares, mas também de travar o seu programa de mísseis balísticos. Uma guerra sem fim à vista, sem compromisso possível ou paz concebível. Por isso, este ataque transcende o ato militar: representa uma rutura profunda com a própria ideia e possibilidade de uma diplomacia digna desse nome.
Israel não atacou apenas o Irão. Substituiu a política pela estratégia, o compromisso pela ofensiva preventiva. Mas o paradoxo permanece inevitável: uma vitória tática pode ser o prólogo de um desastre estratégico. Por mais que se queira acreditar, o conhecimento, mesmo nas mãos de uma teocracia maligna, não é aniquilado por bombas. O urânio pode ser enriquecido noutro lugar, noutras mãos. O que Israel destruiu foram estruturas e indivíduos. O que o Irão conserva é memória e, mais inquietante ainda, uma base de apoio interno que resiste mesmo à humilhação. Teremos de aceitar que, para quem deseja o colapso do regime dos Ayatollahs, a realidade ainda é amarga: os iranianos aparentemente continuam a apoiar o regime, apesar das divisões internas e após a repressão que se seguiu à morte de Mahsa Amini.
Convém pensar que decapitar um regime humilhado pode abrir caminho a uma serpente ainda mais venenosa. Quem ainda confunde o colapso de ditaduras com o nascimento automático de democracias nada aprendeu com 1979 – a queda dos Pahlavi – com 2003 ou com a Primavera Árabe. O Médio Oriente não é prisioneiro de maldições históricas, mas refém de escolhas erradas, desde a descaracterização da Declaração Balfour à forma como Netanyahu apostou na ideia de que um Hamas forte reduziria a pressão para a criação de um Estado palestiniano.
Israel tem o direito e o dever de se defender. Nenhuma nação pode ser censurada por recusar a sua própria extinção. Um país que caberia quatro vezes em Portugal, cercado por inimigos declarados, não pode dar-se ao luxo da ingenuidade estratégica. Se algum dia o Irão vier a possuir armas nucleares, Israel deixará de ser um Estado vulnerável para passar a ser um alvo inevitável. Não é uma ameaça retórica: é existencial. E a história ensinou aos israelitas que confiar na boa vontade dos seus inimigos equivale, muitas vezes, a uma sentença de morte. A defesa não é um capricho, mas uma necessidade. Mas o direito à defesa não pode ser confundido com o direito à imprudência ou como uma licença para converter cada ameaça num ciclo perpétuo de violência.
É precisamente aqui que reside a tragédia estratégica de Israel: a fronteira entre defesa e autossabotagem tornou-se perigosamente ténue. O perigo real não é apenas o Irão. É a armadilha da guerra perpétua, a ilusão de que a segurança se constrói sobre as ruínas sucessivas dos vizinhos. Nenhum país, por mais poderoso que seja militarmente, sobreviverá eternamente num estado de mobilização permanente.
Esta não é uma fatalidade, mas uma escolha política deliberada. Uma escolha que não destrói apenas inimigos externos, mas arrasta consigo democracias emergentes e equilíbrios regionais. É aqui que Netanyahu revela a sua maior contradição: estratega implacável no xadrez internacional, é simultaneamente prisioneiro das forças que ajudou a libertar no seu próprio país. Governado por uma coligação sequestrada por uma extrema-direita retrógrada, Israel tornou-se uma potência militar dirigida por um executivo disposto a sacrificar a coesão nacional para prolongar a sobrevivência política do primeiro-ministro.
Israel poderá parecer mais seguro daqui a umas semanas, mas essa segurança será uma ilusão que arrastará não apenas a região, mas talvez o próprio mundo, para o caos. Para compreender o alcance desta guerra, será preciso olhar para além do Médio Oriente. Vladimir Putin, que contou com o apoio iraniano na invasão da Ucrânia, terá agora de decidir como reagir à ofensiva israelita sobre Teerão, posicionando-se como eventual mediador. A China, grande importadora do petróleo regional, terá de escolher o que fará se o Estreito de Ormuz for bloqueado ou se a produção iraniana for comprometida. Os países árabes, como quase sempre, condenam publicamente a escalada israelita, mas nos bastidores anseiam pelo enfraquecimento do regime xiita, com destaque para a Arábia Saudita.
Os Estados Unidos, mesmo antecipando este desfecho, arriscam ser arrastados para mais uma guerra no Médio Oriente. Talvez nem seja necessário que Teerão ataque bases americanas na região ou perturbe o fornecimento de petróleo para o conflito escalar. Trump, ao contrário do que proclama, não resolve guerras – potencia-as, semeando a confusão com a sua volatilidade.
Tentar adivinhar os cenários das próximas semanas é um exercício especulativo: assistiremos ao colapso do regime iraniano, seguido por uma transição política responsável? A uma luta entre clérigos, militares e minorias, ao risco de guerra civil? Ou, pelo contrário, devemos preparar-nos para a sabotagem energética, inflação descontrolada, terrorismo e uma guerra regional? O mais provável, porém, não será nem a utopia nem um cataclismo iminente na região, mas uma guerra suja, também contra civis e infraestruturas civis – talvez muito mais breve, tendo em conta o controlo por parte de Israel do espaço aéreo iraniano – mas com danos irreversíveis para uma ordem internacional já em decomposição.
Ainda assim, continua a existir espaço para a diplomacia. Não por idealismo, mas por pragmatismo face aos futuros prováveis para o Irão e para a região. Raramente, quando todas as partes percebem que não existem soluções perfeitas, emergem soluções impensáveis. Netanyahu atacou para garantir a sobrevivência de Israel. Mas poderá descobrir, como tantos antes dele, que nenhum Estado sobrevive sozinho. Talvez com um eventual acordo, que force o Irão a abdicar do seu programa nuclear ou abra espaço para uma transição pacífica, demonstre ser finalmente capaz de distinguir entre força e segurança, entre tática e estratégia, entre a vitória no campo de batalha e a promessa de um futuro pacífico, tanto para o seu povo como para os seus vizinhos.