A propósito da campanha da DGS, que mencionava “pessoas que menstruam”, muito se falou sobre o uso da palavra “pessoas” e não “mulheres”. A verdade, é que há pessoas que não são mulheres que menstruam e mulheres que não menstruam — mulhers trans, pessoas não-binárias, intersexo — mas nem sequer precisamos de ir para o espectro LGBTQI para perceber a dinâmica de como a menstruação não define a mulher. Sobre a campanha em si, recomendo a leitura da newsletter exímia de Bernardo Mendonça, que, inclusive, menciona um artigo mais antigo meu. No entanto, nesta crónica debruçar-me-ei sobre a realidade das mulheres cis, já que a crítica era, precisamente, a DGS não ter escolhido a expressão “mulheres que menstruam”. (Na verdade, a DGS seguiu as diretrizes da OMS, como referido por Bernardo Mendonça”). Assim sendo, vamos pensar sobre a relação entre útero, menstruação, fertilidade e ser mulher.
“Agora já és uma mulher”
É esta frase que ainda é muitas vezes dita a meninas quando lhes vem a menarca (primeira menstruação). É uma frase muito forte, subentendo que, a partir daquele momento, só porque lhes apareceu uma manchinha nas cuecas, são crescidas e têm “de ter cuidado”. Uma menina de 12 anos continua a ser uma menina de 12 anos, mesmo depois de ter a menarca. (Veja-se a publicação da sexóloga Vânia Beliz sobre o assunto). No entanto, ao ouvir esta frase, recebe-se um peso de responsabilidade descabido para a idade que se tem. O mesmo não acontece com os rapazes.
Não é a menarca que define a mulher. Uma menina é uma menina antes e depois de ter a menarca.
Além disso, há crianças que, embora exteriormente tenham nascido com vulva, nunca chegam a ter menstruação. Esta característica, presente em 1 em cada 4500 pessoas que nascem com vulva, normalmente só é descoberta na puberdade, aquando a falta da menarca e chama-se Síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH), característica que se define com o subdesenvolvimento da vagina ou útero.
Uma menina é menos menina antes de ter a menarca?
Uma menina é menos menina por nunca ter menstruado?
Dentro das mulheres não menstruantes, pode haver outras condições de saúde, como a anemia, que façam com que a mulher não menstrue. Como é óbvio, isso não faz das mulheres menos mulheres. Neste sentido, a menstruação pode ser vista como um indicador de saúde da mulher, já que as alterações significativas no ciclo podem ser um indício de certas condições de saúde. Por exemplo, há uns anos, a coloração e o fluxo da minha mentruação estavam muito alterados, o que me levou a fazer análises e descobrir que estava com o valor do ferro mesmo muito baixo.
“Tive de tomar a pílula porque os meus ciclos eram muito irregulares”
Antes de mais, para quem já disse isto, por favor leiam o livro “Não é só sangue”, de Patrícia Lemos. Quando se toma a pílula e se tem “período” nos dias de pausa, não é menstruação que se tem, é sangramento de privação, pois enquanto se toma a pílula não se ovula, suprime-se o ciclo. Ora, não é por se tomar a pílula que o ciclo se regula, é só aparente. Como escreve Patrícia Lemos, com o seu humor característico, “o nosso ciclo menstrual está suprimido. Imagina-o de férias, sem trabalhar – há quantos anos, no teu caso? pois… – lá longe. Tipo, no Bali.”
Noutros casos, quando se toma a pílula contínua, ou outros contraceptivos hormonais, não há sequer sangramento (ou apenas spotting).
Tomemos por exemplo uma mulher que tome a pílula regular, em que para uma semana por mês. Nessa semana ela sangra, mas não é menstruação, é sangramento de privação. Há, ainda, mulheres que decidem, pelas mais variadíssimas razões, deixar de menstruar, tomando pílula contínua ou usando outros métodos hormonais.
Assim sendo, pergunto: uma mulher que tome pílula contínua para não menstruar, é menos mulher?
“Uma mulher é aquela que é capaz de engravidar”
Já li e ouvi muitas vezes que o apogeu de ser mulher é engravidar. Ora, por muito que eu consiga perceber a magia que muita gente atribui a este estado — porque realmente é incrível como um novo ser pode ser gerado no ventre de alguém —, assumir que isso é o pico máximo do que significa ser mulher é muito conflituoso. Sobre este assunto, a escritora Emilie Pine, que no seu livro “Notes to Self” partilha as suas dificuldades em engravidar e de como sentiu que a infertilidade na mulher era uma sensação de solidão muito específica, como se o corpo dela, que supostamente era criado para estar pronto para engravidar, a estivesse a trair. Ora, esta noção de feminilidade interligada à capacidade de engravidar cria esta noção desafiante de traição biológica quando se enfrenta problemas de fertilidade.
Uma mulher infértil é menos mulher?
Além disso, uma mulher grávida não menstrua, e, obviamente, não é menos mulher por isso. Aliás, existe a crença de que uma mulher que está a amamentar não consegue engravidar, devido ao facto de não menstruar. Graças a isso, muitas gravidezes aparecem de surpresa. Deixo, ainda, a nota de que há pílulas anticoncepcionais no mercado para quem está a amamentar.
“Se uma mulher não é uma pessoa que tem a capacidade de engravidar, que tem um útero ou que menstrua… O que diferencia uma mulher de um homem?”
Como vimos acima, há pessoas que se identificam como mulheres e têm vulva, mas têm uma vagina ou útero subdesenvolvidos (síndrome MRKH). Isso não faz delas menos mulheres. Para além desta realidade, não nos podemos esquecer que há mulheres que nasceram com útero e que, por alguma razão, tiveram de realizar uma histerectomia (retirar o útero).
Se partirmos do pressuposto de que uma mulher é mulher porque nasce com útero, o raciocínio decorrente de tal seria que sendo-lhe o útero retirado, deixaria de ser mulher.
Uma mulher que fez uma histerectomia é menos mulher?
Uma mulher que teve de retirar os ovários é menos mulher?
Uma mulher que fez uma laqueação das trompas é menos mulher?
Quem me está a ler pode afirmar que até este ponto me debrucei mais em exceções do que na generalidade da realidade das mulheres. Se por um lado posso dizer que ao juntarmos todas estas exceções teremos uma amostra grande de pessoas, por outro posso refletir sobre experiência cis considerada mais comum de uma mulher: nascer com vulva, útero e ovários; menstruar na pré-adolescência; engravidar; e entre os 45-50 tem menopausa.
Ora, mesmo seguindo esta cronologia, facilmente percebemos que uma mulher cis, no geral, só menstrua metade da sua vida, da menarca à menopausa, sem contar com possíveis gravidezes, e não deixa de ser mulher nos períodos em que não menstrua. Poderemos mesmo então dizer que é a menstruação que define se alguém é mulher?
Ser mulher é sentir-se mulher, é saber que se é mulher, tão simples e tão complicado quanto isso. Claro que esta realidade comporta coisas belas e muitos preconceitos contra mulheres. Mesmo assim, não há uma caixa em que todas as mulheres pertençam. Não é simples e a beleza está precisamente na complexidade.
Para concluir, e dando a volta ao contexto inicial, como disse Patrícia Lemos, especialista em fertilidade da página Círculo Perfeito, sobre a campanha da DGS: “a menstruação não define ninguém, mas saber se alguém menstrua é importante no acesso a cuidados de saúde.”
Este mesmo raciocínio pode ser usado como resposta à polémica de incluir homens trans com útero no rastreio do colo do útero. O que importa é se a pessoa tem ou não útero. Se a pessoa o tem, deve ter acesso ao rastreio. Se é difícil de encaixar esta realidade, pensemos: fará sentido uma mulher que fez histerectomia fazer o rastreio do colo do útero? Não, porque não o tem. Mas se o tivesse, faria sentido.
Só pelo facto da nossa realidade nos parecer a mais comum à nossa volta, não quer dizer que o seja. Há muitas condições, características e realidades a que não temos acesso quando não conhecemos as pessoas. E a existência de preconceito antes de as conhecer é inimiga da vida em comunidade com empatia.