Diário da Peste,
17 de Maio
Demora oito minutos no ar.
Fica uns dias no metal, outros tantos na roupa, chão, madeira. E nos alimentos.
Prazos difíceis de memorizar. São demasiados e distintos.
Duas acções de resistência. É preciso esperar ou limpar.
Quanto tempo fica o mal numa superfície?
Pensar no mal que se elimina limpando.
Apesar de tudo é um mal mais ou menos manso.
Um mal que espera. Não ataca.
Ontem na Alemanha, manifestações a favor do desconfinamento total.
Munique, Berlim e Estugarda.
Em Estugarda, cinco mil pessoas. Em Munique, mil pessoas à distância legal.
Resistance 2020, grupo que questiona as estatísticas alemãs da epidemia de Covid-19.
Outro grupo, o Compact, assume-se como “uma espada afiada contra a propaganda imperial”.
“As pessoas são todas as mesmas, Madame.” Lydia Davis.
As pessoas não são todas as mesmas, Madame.
Marie Curie morreu em 1934 por efeito de radiação.
Os objectos de Marie Curie ainda estão contaminados.
Móveis, roupas, livros, cadernos, pequenos objectos de utilidade prática.
Um livro radioactivo, livro perigoso.
Ela descobriu o Polónio - Polónia, claro - e o Rádio.
A substância que está nos seus objectos é o rádio 226.
Pode manter-se activo e maldoso durante 1600 anos.
Falta muito para se ter acesso aos objectos sem protecção especial.
Cortázar: “sou dos que saem de noite sem propósito fixo”.
Imagino de cada casa um dos humanos sair sem propósito fixo.
E deixar os outros à janela.
Muitas casas cortadas ao meio; um quer sair, o outro ficar.
Trump diz estar a avaliar “retomar contribuição para a OMS”.
“Quando usar máscara? Quando tirar anéis”? A Direcção Geral de Saúde lança manual com medidas para todos”.
Marie Curie está sepultada num caixão revestido com 2,5 cm de chumbo.
Junto ao marido. Os dois à distância mínima mais os necessários 2,5 cm de chumbo.
Rilke: “Só tu me fazes só”.
Encontrar a única pessoa que tem a nossa solidão.
Projecto para os tempos que faltam.
Marie Curie nasceu em Varsóvia.
Na semana passada, em Varsóvia, um violinista foi repreendido por tocar na rua.
Os músicos tocam uma, duas notas e fogem.
"Há muita depressão nas ruas de Itália. A pandemia foi uma forma de violência psicológica".
Quanto tempo fica o mal num corpo?
E no espaço?
Os relógios assumem minutos uniformes e falsos.
Um cronómetro para contar o tempo que o mal dura num corpo, num objecto ou num lugar. Cronómetro negro.
No Brasil, pânico e alvoroço.
Carros na rua a exigir a abertura de tudo; corpos parados em definitivo sem força para nada.
“Ainda assim, decidi continuar a viver um pouco mais”, diz uma personagem de Lydia Davis, “pelo menos enquanto durar a noite.”
No Brasil, a noite dura. A manhã aparece e a noite não passa.
Em Detroit dizem que em dois meses uma década de recuperação foi destruída.
Em Las Vegas, a economia está KO.
Rilke.
“O que é Roma?
Desmorona-se.
O que é o Mundo?
Despedaça-se.”
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Índice
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