Opinião

Diário da Peste. Pintar de branco a acelerada superfície de um dia

Diário da Peste,
16 de Maio


Dia de sol; recuperar ânimo, humor, abrir braços, desencostar o queixo do tronco.
Pintar o diário como o muro; o mesmo branco.
Pintar de branco a acelerada superfície de um dia.
Ontem demasiado down; tonturas e tédio.
Tonturas, tédio e cefaleias; cefaleias que parece um nome de perversas deusas gregas.
Martelam devagar na cabeça como se não quisessem derrubar.
Puro prazer de continuar a bater.
Quantas são as deusas gregas cefaleias que batem à porta com insistência na porta de quem não as chamou?
Recomeça a liga de futebol na Alemanha.
Primeiro jogo desde há meses na Europa.
B. Dortmund -Schalke 04.
Resultado: 4-0. Um, dois três, quatro.
Jogadores levantam os braços, mas não se aproximam uns dos outros.
Espaço, é preciso espaço.
Em 2013 o poeta Kenneth Goldsmith fez uma convocatória para se imprimir a totalidade da internet.
Printing out internet, o projecto.
Transformar tudo o que é imaterial em matéria concreta que ocupa espaço.
Uma outra invasão do território, penso.
Abro os braços. É o vazio que permite abrir os braços, isso é evidente.
Pesadelo: o dia em que a internet exigir ocupar espaço e ser impressa.
O ar inteiro repleto de informação tornar-se coisa teimosa, sólida e concreta.
Não haver espaço para os humanos porque a internet foi toda impressa.
4-0, o jogo.
A alegria é agora vertical e não horizontal.
Cada um festeja no seu quadrado, de baixo para cima.
Só o céu ou o simples ar próximo é agora companheiro de equipa.
A festa torna-se individual, quase egoísta.
Nem um toque tímido no dedo como na Capela Sistina.
Nem brutalidade, nem delicadeza.
O ar existe entre dois humanos que festejam, e esse vazio é para manter.
Sê alegre por favor a um metro de mim no mínimo.
Acabou a alegria de grupo.
Começou um somatório de mercearia das simples alegrias individuais.
No futebol, onze alegrias somadas.
Nas outras festas, veremos.
Os malucos continuaram na rua e multiplicaram-se.
Um maluco em França, perto de Lille, quer vender uma passadeira.
Não aceita que ninguém passe por ali, porque ele é o dono.
Fez um governo e convida as pessoas que circulam na rua para serem ministros.
Uma amiga minha foi escolhida para Ministra da Economia e das Passadeiras.
Aceitou e mandou-me uma mensagem a dizer que está contente.
Nos bancos, jogadores suplentes separados dois metros entre si, apanha-bolas com máscaras.
A bola desinfetada. Os cuidados com que se pega no ouro ou na granada perigosa.
De resto, quase tudo igual a não ser o que não se vê.
Parece uma farsa, uma vida paralela à anterior.
Duas rectas paralelas que talvez se encontrem daqui a ano e meio, quem sabe.
Família em cada casa, histórias que se ouvem; pesadelo e levitação.
Szymborska:
“Mulher, como te chamas? – Não sei.
Quando nasceste, de onde vens? – Não sei.
Porque é que cavaste uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto estás aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeste o meu dedo? – Não sei.
Não sabes que não te vamos fazer mal nenhum? – Não sei.
De que lado estás? – Não sei.
É a guerra, tens de escolher. – Não sei.
A tua aldeia ainda existe? – Não sei.
Esses são os teus filhos? – São.”
Hoje o sol limpa o que pode e o sol pode muita coisa, claro, mas não tudo.

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