Diário da Peste,
14 de Maio
Uma peregrinação sem peregrinos. O dia de ontem ainda.
Porque não se peregrina só com os pés, dizem.
O Santuário de Fátima pediu aos que ficaram em casa para acenderem uma vela junto às janelas.
De dia uma vela não se vê. À noite, sim.
Na Califórnia, uma universidade cancelou todas as aulas do semestre a partir de setembro.
E em Montenegro um bispo foi preso por organizar uma procissão.
Do campo, dizem-me que uma cegonha mora numa palmeira morta do cemitério,
Já há crias e estão grandes.
Morreu um dos principais líderes indígenas da Amazónia.
Os rituais suspensos, adiados.
À distância, todos os rituais parecem iguais.
A importância da ciência; na revolução e na doença.
Lavoisier guilhotinado na Revolução francesa, acusado de fraude e de vender tabaco adulterado.
Alguém terá dito: não se deve matar um homem tão sábio.
O juiz: A República não precisa de homens de ciência.
Criminalidade em Itália caiu 90% durante o confinamento.
Num jornal do Brasil, o rosto enorme de uma enfermeira. Marcado a vermelho e branco.
Em Madrid e na Amazónia, as pessoas tocam no próprio corpo como num tambor.
Produzem um som que soa a lamento.
A mão contra o corpo produz riso e choro bem diferente do produzido pela boca.
Alguém me conta que em Angra se ouvem os cães a latir como se ouviam antes da derrocada da lama de 2010.
Fronteira Bélgica – Holanda.
Uma loja de roupa chamada Zeemans, metade em cada lado.
A parte da loja na Holanda, aberta.
A parte da loja na Bélgica, fechada.
A parte da loja na Bélgica, fechada, tem roupa de homem.
Paul B. Preciado, Outubro de 2016. Depois de alugar uma casa em Atenas.
A casa vazia. O corpo em trânsito. Zero móveis.
Dormia no chão, acordava com dores nos quadris, cotovelos.
A primeira experiência estética, diz Preciado: um corpo, um espaço.
Duas considerações rápidas:
“Uma mesa e uma cadeira formam um casal complementar que não permite questionamento.
Um armário é o primeiro certificado de propriedade privada.”
Imaginar Paul B. Preciado na loja de roupa chamada Zeemans.
Dois lados separados por uma fronteira violenta.
Os homens não podem comprar calças porque as calças estão na Bélgica.
Junto a uma árvore, no meio de um parque. Uma caixa.
Uma folha escrita à mão pendurada no tronco:
Leve o que precisar. Deixe o que quiser.
Mas em redor da árvore há pouco movimento.
Alguém que não acredita nos humanos, diz:
se todos levassem o que precisam e deixassem o que quisessem, em pouco tempo isto ficaria um caixote do lixo.
Um cartaz cínico, propõe ele:
Deixe aqui tudo o que precisar, leve aquilo que eu deitei fora.
Tove Ditlevsen, poeta, Dinamarca.
Sobre matrimónio e divórcio.
“Ele pediria
em caso de divórcio
a metade
de tudo
disse ele
meio sofá
meio televisor
meia casa do campo
meio quilo de manteiga”.
Em França, um casal de noivos com máscara posa para a foto.
E no México, medidas de recomeço.
Os municípios com menos casos são chamados “municípios de la esperanza”.
O meu oráculo. Jardim de Morya.
“o corajoso escolhe o caminho certo”.
Como se a coragem fosse um sentido de orientação.
Levar a coragem, prescindir da bússola.
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