Longevidade

Demência: “Ainda há muito estigma”, o caminho para o enfrentar é “tentar ver a pessoa em primeiro lugar”

As pessoas com demência sofrem de um estigma que se reveste de várias formas, desde o associado à própria doença, ao envelhecimento ou às ideias que muitos têm e que nem sempre correspondem à realidade. E a forma como os mais próximos lidam com a situação tem impacto para a experiência se tornar mais ou menos positiva. A propósito do Dia Mundial da Doença de Alzheimer, que se assinala nesta quinta-feira, o Expresso conversou com a psicóloga Isabel Sousa, com mais de dez anos de trabalho na área e uma das autoras do livro “Viver com Demência”

Stefan Cioata

Com o aumento da esperança média de vida, vivemos mais tempo. O avançar da idade traz uma maior probabilidade de vir a desenvolver demência, uma vez que este é o principal fator de risco. Mas a demência não faz parte de um processo de “envelhecimento normal ou saudável” e esta é apenas uma das ideias em relação à doença que precisa de ser desconstruída.

Quem o explica é a psicóloga Isabel Sousa, em entrevista ao Expresso a propósito do Dia Mundial da Doença de Alzheimer – a forma mais comum de demência –, que se assinala nesta quinta-feira. Ainda está muito presente a ideia de que as pessoas com mais idade “têm ou vão necessariamente desenvolver demência”, o que “não é verdade”. “A demência é causada por doenças que afetam o cérebro. Para haver diagnóstico, não bastam as alterações cognitivas, estas têm de provocar perda de autonomia”, indica a especialista em psicogerontologia.

Ainda que “lentamente”, nos últimos anos tem-se assistido a “algumas mudanças”, mas “ainda há muito estigma”. Desde logo, o associado à própria doença e aos sintomas, como os esquecimentos e a desorientação, a que se juntam outros dois. “Há um estigma em relação ao envelhecimento. As pessoas com demência sofrem porque são mais velhas, na maioria das vezes. Associado está também o estigma relacionado às doenças mentais e que ainda existe da loucura”, aponta Isabel Sousa. Estamos, portanto, perante um “triplo estigma”, que muitas vezes resulta em isolamento social, “com receio da forma como os outros vão reagir e tratar a pessoa”.

A psicóloga conta que, quando se imagina alguém com demência, muitos pensam numa pessoa que “já não tem capacidade para fazer nada, não tem autonomia, depende de um familiar para tudo, não se recorda do nome de ninguém”. Mas este é o retrato da doença em fases mais avançadas, que pode demorar anos a atingir. E a experiência de quem a vive não tem de ser sempre um “pesadelo”.

Experiência depende do ambiente em redor

É precisamente isso que, juntamente com a também psicóloga Gabriela Álvares Pereira, mostra no livro “Viver com Demência”, publicado pela Ordem dos Psicólogos. “Achámos que era importante escrever sobre a experiência de viver com demência, na perspetiva de toda a gente que está envolvida e, na verdade, todos estamos envolvidos, mais ou menos diretamente.”

Além da vivência da pessoa diagnosticada, o livro aborda a perspetiva dos familiares e cuidadores, dos profissionais e da comunidade. “A experiência de quem vive com demência é impactada pelo ambiente à sua volta. Esta experiência pode ser mais positiva ou mais negativa dependendo da forma como todos lidam com a demência”, sintetiza.

O papel dos mais próximos passa por apoiar no processo de adaptação. O próprio tem de “aprender a viver com a mudança”, nomeadamente a perda de capacidades, esforçando-se por “manter a continuidade”, o que quer dizer que “não há uma vida antes e uma vida depois da demência, a vida é a mesma e continua”. “Há um processo de adaptação, aceitação e integração desta nova condição.”

Aqui, Isabel Sousa destaca que – ao contrário do que se possa pensar – a pessoa “não desapareceu”. “Não consegue é aceder à informação que lhe permite continuar a ser quem era. Mas não deixa de ser quem foi, precisa é que alguém lhe lembre e faça a narrativa, as pessoas mais próximas, que conhecem a sua história de vida.”

É essencial que a pessoa seja ouvida e incluída na tomada de decisões e que se respeite as capacidades, mesmo com limitações, permitindo que seja “o mais autónoma possível em cada momento”. “Sabemos que está a perder autonomia, mas há coisas que consegue fazer e isso pode dar-lhe um sentido de utilidade, de continuar a ser capaz e com valor.”

“A experiência de quem vive com demência é impactada pelo ambiente à sua volta. Esta experiência pode ser mais positiva ou mais negativa dependendo da forma como todos lidam com a demência”

Caminho a percorrer

Em poucas palavras, o conselho é “tentar ver a pessoa em primeiro lugar e não a demência que tem”, porque ela é “muito mais” do que a doença. Mas, para tudo isto, ainda faltam apoios em Portugal que contribuam para atender às necessidades. Desde logo, a já publicada Estratégia da Saúde na Área das Demências, que “ainda não saiu do papel”.

Em termos de cuidados, que devem ser personalizados, o apoio domiciliário mais acessível ainda assenta sobretudo em aspetos práticos, como a higiene. Respostas de intervenção ao nível da estimulação cognitiva, por exemplo, não são acessíveis “à maior parte das pessoas” por motivos financeiros. O mesmo acontece nas estruturas residenciais: os técnicos “têm essa preocupação de oferecer um apoio mais multidisciplinar”, mas as instituições “não têm recursos” suficientes.

Em Portugal, a estimativa aponta para cerca de 200 mil pessoas com a doença. Atualmente, são mais de 55 milhões em todo o mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. Um relatório da Lancet Commissions publicado em 2020 revelou que cerca de 40% das demências podem ser prevenidas ou o surgimento atrasado se 12 fatores de risco forem trabalhados. Estes resumem-se, diz Isabel Sousa, num “estilo de vida saudável”, que se baseia em três pilares de prevenção: as atividades física, mental e social.

O primeiro é “manter-se ativo”, em que atividades do dia a dia, como subir escadas ou caminhar, podem fazer a diferença. O segundo relaciona-se com adquirir novas aprendizagens ou realizar atividades que “desafiam o cérebro e a função cognitiva”, como palavras cruzadas. O terceiro é algo “muito importante e menos falado”: o convívio e a amizade. Um fator que “tem estado a ser cada vez mais estudado” e cujos resultados apontam para “benefícios na cognição e no atraso do declínio cognitivo associado à demência”.