Aos 59 anos, em plena pandemia, Gilberto Martins deixou um emprego estável para procurar um novo trabalho. A idade nunca foi uma preocupação. Apenas um número ao qual juntou 25 anos de experiência na área do marketing e publicidade. Demitiu-se, foi ao mercado e acabou por receber quatro propostas. Hoje, com 61, é o responsável de transformação digital na Fullsix, agência líder de mercado na Europa nas áreas de estratégia, criatividade e tecnologia. “O dono de uma empresa minha cliente costuma brincar comigo e diz-me: ‘Gilberto, não te reformes antes de acabar o projeto’.”
Se largar um trabalho implica correr riscos, esse risco aumenta exponencialmente quando a idade da reforma paira sobre a linha do tempo. Mas o caso de Gilberto é daquelas exceções que confirmam a regra: em Portugal existe um preconceito laboral — e não só — relativo às pessoas mais velhas. No “Global Report on Ageism”, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) conclui que uma em cada duas pessoas tem atitudes discriminatórias com pessoas idosas.
“Não há consciência da importância da diversidade intergeracional nas organizações em Portugal”, diz José Carreira, cofundador do Movimento Ibero-Americano Stop Idadismo, uma organização que luta pelo direito de pessoas com mais de 50 anos. “Nesta idade, as pessoas estão muito expostas à volatilidade do mercado de trabalho. Trata-se de uma discriminação que afeta também os jovens em início de carreira. Nos recursos humanos das grandes empresas pensa-se que as pessoas entre os 30 e os 40 anos são mais criativas, empreendedoras e inovadoras. Isso limita os seniores.”
Há, no entanto, um capital fundamental, como nota Alexandre Kalache, investigador na área do envelhecimento e com um longo trabalho desenvolvido ao serviço da OMS: “As empresas precisam de perceber que o capital mais importante é o capital humano, que deve ser preparado ao longo do tempo de vida, para que os colaboradores continuem motivados — e as empresas sem práticas de idadismo [discriminação em função da idade]”, afirma. “Estas pessoas muito frequentemente não são valorizadas, e isso é limitar a força de trabalho num país que envelhece tão rapidamente como Portugal. É preciso adequar as políticas.”
Uma empresa, várias gerações
Claro que todas as regras têm a sua exceção, e em Portugal há exemplos de boas práticas no que respeita ao trabalho dos seniores. É o caso do grupo Salvador Caetano, que desde 1981 tem uma estrutura de formação designada Academia Ser Caetano. “Quando iniciámos este projeto, havia necessidade de qualificar os jovens em diferentes áreas para as nossas fábricas, como pintura, mecânica, eletricidade, chaparia”, explica Luís Caseiro, diretor do departamento de formação e desenvolvimento de colaboradores, sublinhando o papel dos funcionários mais velhos neste centro, onde o talento sénior é um dos pilares da formação.
“Trabalhamos com ‘mentores de conhecimento’. São aqueles profissionais que estão a cinco ou seis anos da reforma — e alguns já reformados —, mas com muitos conhecimentos da operação e tarefas práticas nas fábricas. É uma forma de aproveitar o saber, os anos e a experiência com pessoas que conhecem os valores e princípios da organização. Caso estejam motivados, colocamos estes profissionais a passar esse know-how para os recém-admitidos.” Com perto de 4700 funcionários em Portugal — e 7600 a nível internacional —, neste momento a academia de formação tem sensivelmente 950 jovens e 20 formadores que pertencem aos quadros seniores da empresa. A passagem de testemunho e de experiência tornou-se fundamental para os jovens, mas também para os seniores, que já não tinham disponibilidade física para trabalhar nas fábricas, reconvertendo assim as suas carreiras. “Ainda temos colaboradores com mais de 60 anos, trabalharam uma vida inteira, porque o grupo é familiar. Em muitos casos os pais já cá trabalhavam, outros têm cá os filhos. Temos várias gerações a trabalhar nas fábricas.”
Universidade do erro
Numa sondagem do Estado da Nação feita pelo ICS/ISCTE para o Expresso e SIC, à pergunta sobre como as políticas públicas têm dado atenção aos vários grupos sociais, conclui-se que os reformados ocupam o topo dos que recebem “menos atenção”, com 87%, seguidos dos mais pobres (86%) e das pessoas com deficiência (84%). Estes dados permitem concluir que estamos perante três dos grupos mais vulneráveis do país.
José Carreira considera que, apesar de haver muito a fazer, este ano houve sinais positivos: a associação Stop Idadismo foi recebida pelo grupo parlamentar do PS e a expectativa é de que se legisle sobre os seniores em contexto laboral. “O tema está na ordem do dia, e isso é positivo. Existe sensibilidade, embora continuemos a receber muitas denúncias de más práticas nas empresas. Reestruturações que são eufemismos para despedir funcionários perto da idade da reforma.”
Contactado pelo Expresso, o secretário de Estado do Trabalho revelou que o Governo pretende ajudar as empresas a adotarem melhores práticas e adaptarem postos de trabalho para seniores. “O objetivo é ajudar a uma transição para a reforma mais graduada. É importante a transmissão da memória e da experiência”, afirmou Miguel Fontes. O investimento será feito a partir do PRR e do PT2030.
Reforma é uma palavra que Gilberto Martins mal consegue pronunciar. Filho de pais portugueses, a viver em Portugal desde 1988, tem 61 anos e está longe de abrandar. “Não me vejo no futuro fora deste ritmo. Vejo-me a ajudar empresas, sentar e conversar. A reforma será uma consequência, não uma prática. Esta área da tecnologia obriga-me a ler muito e penso que vou continuar a estudar, fazer coisas de que gosto.” Além disso, hoje tem 12 pessoas com quem trabalha na transformação digital. “Tenho essa preocupação de formar pessoas. Claro que a melhor forma de aprender é errar. Essa foi a minha melhor escola, a universidade do erro.”
P&R
De que forma as empresas encaram a idade da reforma dos seus colaboradores?
Embora não existam dados oficiais sobre o assunto, a perceção de quem estuda a longevidade é clara: em Portugal existe discriminação pela idade, tanto no que respeita aos jovens como aos mais velhos. O problema não se limita às empresas do sector privado, que regra geral subvalorizam funcionários com mais de 50 anos. Há três anos, também o Governo implementou um programa de pré-reforma para refrescar os seus quadros.
A Agenda do Trabalho Digno entrou em vigor em maio. Que medidas contemplam?
Nenhuma. Inclui 70 medidas ao serviço dos trabalhadores e das empresas, mas foca-se essencialmente no mercado de trabalho dos jovens. O documento não refere sequer a palavra reforma.
O Governo tem algum plano para o trabalho sénior?
Embora ainda não tenha sido divulgado, o Executivo está a desenvolver um projeto para combater o idadismo nas empresas portuguesas. Será posto em prática através do Centro de Competências para o Envelhecimento Ativo e Saudável — criado recentemente — e passará sobretudo por incentivar a formação e adaptar postos de trabalho para colaboradores mais antigos.
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Textos originalmente publicados no Expresso de 16 de junho de 2023