Guerra na Ucrânia

Zaporíjia e a ameaça de uma catástrofe nuclear: explosão de barragem foi um sinal vermelho. O que se seguirá?

Zelensky fez um aviso à nação a 22 de junho último: a Rússia planeia um ataque que causará uma fuga de radiação. Está concebido e aprovado, sublinhou o Presidente ucraniano. O Kremlin, que sobreviveu a uma tentativa de golpe no início da semana, poderá abalançar-se para decisões ainda mais extremas. Depois da destruição da barragem de Nova Kakhovka, a 6 de junho, teme-se uma escalada que, no pior dos cenários, poderá culminar numa catástrofe nuclear além fronteiras

ALEXANDER ERMOCHENKO/REUTERS

Quase 60 mil soldados ucranianos foram treinados pela NATO, mas ainda não será na cimeira de Vílnius, em julho, que a Aliança Atlântica dará luz verde à candidatura da Ucrânia. O processo será longo. Aliás, já dura, com avanços e recuos, desde 2008. O Presidente russo tirou partido da indecisão e também é verdade que o Ocidente não respeita o acordo de Budapeste, de 1994, ao abrigo do qual a Ucrânia entregou o seu arsenal nuclear à Rússia em troca de proteção e integridade territorial.

No meio deste cenário que se arrasta indefinidamente, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, lança um alerta global para a iminência de um desastre nuclear na central de Zaporíjia, provocado por Moscovo. A Ucrânia pode pedir tudo ao mundo, e o mundo nada fazer, mas a radioatividade é problema de todos.

Quem joga póquer sabe que o bluff é fundamental. Fazer o adversário e a plateia acreditar que a nossa posição é favorável. A confiança na vitória é determinante, mas também inebriante, e o desastre faz parte das probabilidades. Vladimir Putin tem usado a ameaça nuclear desde o início da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022. Afinal, é detentor do maior arsenal nuclear do planeta.

Zelensky fez um aviso à nação a 22 de junho último: a Rússia planeia um ataque que causará uma fuga de radiação. Está concebido e aprovado, sublinhou. Falta a decisão final. O anúncio causou alarme e uma corrida às farmácias para comprar comprimidos de iodeto de potássio, que previne a acumulação de radioatividade na tiroide. Esgotou nalgumas cidades.

O risco parece acrescido agora que a imagem de Putin como homem forte, intocável, saiu beliscada após a tentativa de golpe de Yevgeni Prigozhin, líder do grupo Wagner, que terminou a 200 quilómetros de Moscovo. Várias aeronaves foram destruídas e um importante depósito de combustível da aviação foi atacado em Voronezh, causando um incêndio que demorou 12 horas a ser extinto.

Prigozhin deu meia volta e o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, fez saber que a acusação de traição seria retirada, após um acordo nebuloso mediado por Alexander Lukashenko, o Presidente da Bielorrússia. Mas a acusação ainda está aberta e a incursão a ser investigada.

Fica a sensação de um grande tiro de pólvora seca. Certo é que o vídeo publicado por Putin fala de traição, guerra civil, e de 1917, aludindo ao fim do Império Russo depois do desaire militar na I Guerra Mundial.

Mesmo para quem não percebe russo, o tom e o rosto pálido mostram um Putin acossado. Isto apesar de a contraofensiva ucraniana esbarrar nas linhas defensivas russas, construídas durante meses, onde “está tudo minado”, como afirma ao Expresso um comandante. Acrescenta que a frente sul tem sido mais atacada pela aviação russa.

Os múltiplos ataques ao porto de Berdyansk, no mar de Azov, e o recente ataque com míssil Stromshadow na ponte de Chongar, que liga à Crimeia, não deixam dúvidas. “A Rússia pode perder até a Crimeia”, são palavras recentes de Prigozhin, num exame de consciência sobre nove anos de guerra de ocupação no Donbas, publicado em vídeos, dias antes da sua incursão rebelde. O momento parece estar do lado dos ucranianos.

Primeiro Putin não ia invadir a Ucrânia, depois não hesitou. A barragem de Nova Kakhovka era um alvo desde a retirada forçada dos russos de Kherson. Já nessa altura havia possibilidade de explosão da barragem, e foram reciclados planos de há décadas para um caso de desastre. O pesadelo ambiental e humano materializou-se. A destruição da bacia hidrográfica contida pela barragem comprometeu o normal funcionamento do mecanismo de arrefecimento da central nuclear de Zaporíjia, ocupada pelos russos desde março de 2022.

A Agência Internacional de Energia atómica inspecionou a central de Zaporíjia após a explosão da barragem e publicou um relatório, a 16 de junho, onde se lê: “A situação é muito delicada, mas por agora está controlada. Carece de supervisão.” O reservatório de arrefecimento dos reatores está cheio e, mesmo que o nível da bacia esteja abaixo do limite para bombear água até à reserva, compra algum tempo. “Não foram vistos quaisquer explosivos no reservatório”, conclui. Nada diz sobre reservatórios minados.

Budanov, chefe da espionagem ucraniana, declarou ter informação contrária. “O reservatório de arrefecimento estará armadilhado, o que representa uma ameaça, se for detonado. Sem arrefecimento, os reatores podem derreter num período de 10 horas a 14 dias.”

Budanov acredita que um aumento da voltagem nas linhas de fornecimento elétrico à central possa causar uma catástrofe em horas, no limite baixo do intervalo. “Processos técnicos podem acelerar esta situação, que nunca foi tão grave”, refere numa entrevista à revista britânica “New Statesman”, a 23 de junho. Acrescenta que “carros militares carregados de explosivos foram colocados na proximidade de quatros dos seis reatores”. Segundo o chefe da espionagem, “está tudo preparado, só falta a decisão final, que pode ser tomada em minutos”.

Budanov encontrou-se em Kiev com o embaixador japonês, Matsuda Kuninori, a 20 de junho. Não se sabe a razão do encontro, mas o Japão é o único país com experiência recente de lidar com acidentes nucleares. Recordemos Fukushima, depois do maremoto de 2011.

Zelensky alertou o mundo: “Os russos planeiam um ataque terrorista na central nuclear de Zaporíjia”. Reforçando a informação avançada pelas secretas, afirmou: “Que fique claro, o mundo tem de saber o que pode estar na iminência de acontecer. A radioatividade não pára nas fronteiras”.

Usando o mesmo argumento, dois experientes senadores dos Estados Unidos da América, Lindsey Graham e Richard Blumenthal, apresentaram a versão preliminar de uma resolução que pretende deixar claro a Putin que qualquer ataque nuclear, com armas táticas ou em Zaporíjia, será visto como ataque aos países vizinhos da NATO, dadas as suas consequências além-fronteiras. Tal forçaria a ativação do artigo 5 do Tratado da NATO.

“A nossa intenção é precisamente dissuadir qualquer ação desta natureza. Não o fazemos fundados no pânico ou irresponsavelmente, mas alicerçados na ciência. Queremos deixar bem claro que qualquer ataque nuclear irá comprar uma guerra com a NATO”, declara o republicano Graham. “Biden disse que a ameaça nuclear é real”, continua o senador, explicando tratar-se de uma linha vermelha. Washington e os aliados da NATO estão conscientes disso.

Ao mesmo tempo, a espionagem ucraniana afirma que “nem uma das armas nucleares táticas foi colocada na Bielorrússia”, apesar do anúncio oficial de Putin e Lukashenko. Tal dá força à tese de iminência de ataque na central de Zaporíjia.

A escalada nuclear irá depender do que a Federação Russa possa ganhar. Segundo Budanov, em declarações à “New Statesman”, há dois cenários. No primeiro, forças russas expulsas das suas posições na margem esquerda do rio Dniepre pretendem criar uma zona de destruição e exclusão, prevenindo o avanço ucraniano. Esta estratégia serve de escudo, e foi usada até agora. No segundo cenário, o ataque nuclear funciona como “medida preventiva” para travar os avanços da contraofensiva ucraniana e congelar a linha de contacto da guerra como está. Budanov está convencido que, à míngua de alternativas, a Rússia vai usar “este ataque terrorista com fuga de radiação”, como afirmou Zelensky,

Apesar de todo o apoio militar da NATO e do Ocidente à Ucrânia, existe frustração nas secretas ucranianas. A resposta internacional tímida à explosão da barragem de Nova Kakhovka pode convidar Putin a uma estratégia de “terra queimada”. Não se sabe se a recente tentativa de golpe na Rússia o demoverá ou pressionará a avançar. Depois do desastre na barragem, como diz o ministro da Saúde ucraniano: “A Rússia é como um macaco com uma granada, podemos esperar tudo”.

Na sombra desta ameaça, a contraofensiva avança em silêncio, pois o acesso no terreno tem sido explicitamente vedado a jornalistas, sendo apenas possível viagens de imprensa em territórios libertados. Toda a informação é baseada em factos selecionados de ambos os lados, como a destruição de um importante depósito de munições russo em Rykove, na região de Kherson, e a libertação de mais uma aldeia, Rivnopil, vizinha das já libertadas Neskushne e Makarivka, na região sul de Donetsk.

O chefe das Forças Armadas Ucranianas, general Zaluzhny, fez-se filmar e partilhou as imagens na rede social Twitter, depois de ter dito que Putin estaria no estrangeiro ou doente. Dentro de um bunker, face a um enorme mapa, fazia o ponto da situação com outros comandantes. A maneira como bate com a caneta na mesa simboliza o que as forças ucranianas estão fazer no terreno, apesar das linhas defensivas russas de três níveis e do recente vídeo do assalto a uma trincheira russa.

Mata-se e morre-se com disparos a menos de um metro. O ministro da Defesa russo, Shoigu, apareceu num vídeo idêntico, esta segunda-feira, alegadamente na Ucrânia. Foi a sua primeira aparição depois das ameaças sucessivas de Prigozhin durante a sua “marcha pela justiça”.

Há um detalhe: o colete à prova de bala de Zaluzhny tem uma figura de velcro de Yoda, personagem da “Guerra das Estrelas”. É para consumo interno das redes sociais, já que o mestre Jedi é um sábio de força infinita. Zaluzhny é adorado na Ucrânia como tal. Shoigu não gozará da mesma popularidade, a julgar pelos residentes de Rostov-on-Don a darem comida a soldados do grupo Wagner e a tirarem fotos com os tanques no centro da cidade.

O Yoda de Zaluzhny não mede mais de sete centímetros, mas a imagem foi partilhada milhões de vezes, o que se traduz em milhões de euros em donativos, que se transformam em milhares de drones, que tiram a vida a centenas de russos. Basta ver os vídeos do comandante Robert Madyar, que comia pipocas durante a tentativa de golpe na Rússia, no fim de semana. Assim se avança no terreno, devagar, mas com as forças armadas motivadas e focadas na vitória.

Moscovo sobrevive a sanções, compra drones ao Irão, munições à Coreia do Norte e, de algum modo, componentes de eletrónica ao mundo, para sustentar a sua industria bélica. Kiev queixa-se que os mísseis intercetados em junho de 2023 têm dezenas de componentes ocidentais. “Porque o fazem, se os sistemas e munição dos Patriot que nos dão são muito mais caros, e nós estamos a morrer?”, pergunta Zelensky.

Na região de Zaporíjia, uma das brigadas a operar um Panzerhaubitze 2000 da NATO, artilharia pesada alemã de ponta, tem um aspirador dentro do compartimento onde a munição é carregada. “É uma máquina muito precisa e eficaz, mas é muito sensível ao pó. Temos de a limpar constantemente para que funcione bem. O material soviético é terrível do ponto de vista do operador, mas aguenta tudo: chuva, lama.”

Por questões logísticas, o PzH 2000 tem de fazer manobras no terreno, que os engenheiros alemães nunca pensaram possíveis. “É formidável, porque carrega sozinho, e aguenta minas. Com o Panzer nunca falhamos”, diz um dos soldados operadores, pedindo anonimato, enquanto abraça o canhão da máquina. A precisão dos ataques e avanços ucranianos sucessivos para lá das incursões em Belgorod, Bryansk e, agora, a intentona de Prigozhin estão a enfurecer o Kremlin. E Putin, sentindo-se acurralado, pode cessar o bluff e decidir avançar para o ataque nuclear como último reduto.

As mesas dos casinos têm, sobretudo duas cores, verde e vermelho. As mesmas da estepe ucraniana na região de Kherson e Zaporíjia, onde fica maior a central nuclear da Europa, seis vezes maior do que Chernobyl. Campos vazios alternam com papoilas a perder de vista, mas os nossos olhos estão pregados às seis chaminés de Energodar, que em suspenso recusamos serem um futuro memento mori. Se as flores podem ser símbolo de armistício, são por agora uma pincelada impressionista a lembrar o sangue derramado. Ou não fosse 22 de junho o dia da memória das vítimas do nazismo e do início da operação Barbarossa.