Moria é o maior campo de refugiados da Europa e já o é há muito tempo. As tendas que preenchem todos os espaços da antiga base militar da ilha grega de Lesbos expandiram-se para lá dos muros que a delimitam. Vivem hoje 13 mil pessoas onde nunca deviam ter vivido mais de três mil. E isso tem consequências: confrontos, violência, protestos, falta de seguranças, condições básicas de vida muito frágeis. O mais recente episódio aconteceu no fim de semana passado, quando um incêndio deflagrou no interior de um dos contentores. Um mulher morreu, mais de uma dezena de pessoas ficaram feridas.
“Todos os anos temos visto sempre os mesmos problemas. Tivemos um incêndio como este em 2016, outro em 2018… Sempre os mesmos problemas”, começa por explicar em entrevista ao Expresso Anna Pantelia, porta-voz dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) nas ilhas gregas. “Não podemos chamar a estas tragédias acidentes, não o são. Quando temos tanta gente a viver em tão pouco espaço - e nem conseguimos assegurar as necessidades básicas -, só podemos esperar que mais tragédias aconteçam. É apenas uma questão de tempo. O que aconteceu no fim de semana acho que não surpreendeu ninguém que tenha estado aqui nos últimos tempos.”
Terça-feira, cerca de 400 pessoas registadas no campo - muitas das quais mulheres e crianças - participaram numa marcha em protestos contra as condições em que vivem. Mais de oito quilómetros a andar sob as temperaturas quentes que ainda se fazem sentir na ilha. Gritaram por melhores condições. Pediram dignidade. Alguns traziam macas cobertas com lençóis, como se transportassem mais um morto.
“Há demonstração de desagrado com a forte presença policial em torno do campo. Está tudo muito vigiado, há sempre polícia por perto. Não há violência ou confrontos mas sente-se a tensão - e sente-se bem”, descreve Anna, que logo em seguida conta que as pessoas já perderam a paciência, que o incêndio e a morte da mulher afegã foram o culminar de uma série de problemas. “Em Olive Grove [o campo de oliveiras ao lado da base militar que se tornou num acampamento e onde milhares de pessoas vivem em tendas] há um sanita para cada 90 pessoas e um duche para cada 200. Toda a gente tem de ficar nas filas para usar as casas de banho e os duches. Nem têm acesso em condições a um banho ou a roupa limpas.”
Muitas vezes são atribuídos lugares nos contentores a pessoas que não se conhecem de lado algum. Chegam a estar 15 (ou mais) desconhecidos numa área de poucos metros quadrados. Não há trancas nas portas ou nos fechos das tendas. “Apenas vão dormir sem qualquer tipo de segurança e na iminência de alguém entrar para fazer alguma coisa.” Perguntamos a Anna o que significa “para fazer alguma coisa” e ela, que quase desde o começo da crise de refugiados está ali, fala sobre os rumores das mulheres abusadas ou assediadas sexualmente - “há uma enorme probabilidade de acontecer”.
As autoridades não confirmam oficialmente estes casos, mas admitem que possam existir.
Há menos de um ano, quando o Expresso visitou “o lugar onde nem eu nem tu queremos viver”, estavam registadas em Moria cerca de oito mil pessoas. Neste momento são 13 mil. A antiga base militar - que com a crise de refugiados e o grande fluxo de pessoas que chegam foi transformada num centro de recepção e identificação onde é obrigatória a passagem de todas as pessoas que entram ilegalmente na ilha de Lesbos - estava preparada para receber, no máximo, três mil pessoas. Ali não deviam esperar mais do que alguns dias ou semanas até o processo de requerimento de asilo arrancar e serem transferidas para outras cidades. Não foi isso que aconteceu. Não é isso que acontece.
“No ano passado eram cerca de oito mil e em outubro de 2018 já havia alguma pessoas a serem retiradas e levadas para o continente. Imaginem agora com 13 mil. É ainda pior, sobretudo quando as transferências acontecem muito menos que no ano passado.”
“Não é muito claro o que aconteceu”
Sobre o acidente que matou a cidadã afegã, há várias versões das causas: foi uma mulher que cozinhava, foi um problema eléctrico num dos contentores, foi alguém de dentro do campo que pôs fogo de propósito. “Sim, já ouvimos todas essas versões. Os jornais gregos também as noticiaram. A verdade é que não sabemos ao certo o que aconteceu - nem acredito que alguém saiba - porque os MSF não estão dentro do campo, estamos em frente, mas do lado de fora”, explica Anna. A organização não-governamental saiu do interior da base militar em jeito de protesto quando, em 2016, a União Europeia assinou o acordo migratório com a Turquia.
“Há uma semana recebemos uma chamada de alerta para o fogo. Começou dentro do campo e rapidamente chegou até Olive Grove. Encontrámos um incêndio enorme, a polícia teve de intervir. As pessoas corriam como loucas para escapar”, descreve a porta-voz da organização, que de imediato disponibilizou médicos, psicólogos, enfermeiros e tradutores. “Tratámos 30 pessoas, oito das quais tiveram de ser enviadas para o hospital, mas não estão em risco de vida. Eram sobretudo ferimentos causados pela evacuação do campo, pelo gás lacrimogéneo lançado pela polícia ou encontrões quando corriam.”
O acesso a serviços de situações não urgentes - pedidos de receitas médicas, exames ou internamentos, por exemplo - tem sido bastante dificultada desde que o novo Governo grego tomou posse, apontam os MSF. O problema? Agora é bem mais difícil conseguir com que seja atribuído a um migrante um número de Segurança Social, imprescindível para recorrer aos serviços de saúde pública.
“Todos os gregos têm esse número, qualquer pessoa que venho para Grécia tem, todos os que vêm para cá trabalhar têm”, diz Anna. E continua: “Nos primeiros tempos da crise migratória era também muito complicado consegui-lo porque era obrigatório apresentar provas de morada permanente. Ora, se as pessoas viviam num campo de refugiados não tinham uma morada fixa. Havia sempre obstáculos mas agora já começava a ser mais simples com a ajuda das assistentes sociais e a simplificação de uma série de processos burocráticos”. Este avanço transformou-se num recuo desde que o “novo Executivo entrou em funções”. “Os serviços públicos pararam de dar números e começaram a arranjar desculpas, voltaram a exigir a prova de morada permanente”, aponta. “Esperamos que o Governo resolva isto rapidamente porque as coisas não podem continuar assim. E depois, dentro do campo, só há três médicos para as 13 mil pessoas. Não é suficiente.”
Em Lesbos, os Médicos Sem Fronteiras têm duas clínicas: uma dedicada a mulheres grávidas e crianças, outra ao acompanhamento psicológico e saúde mental. “Atendemos diariamente 100 crianças e mulheres, que representam a maioria da população do campo (cerca de 60%). A nossa sorte é que o tempo ainda continua bom, quente, seco. Ainda assim, recebemos todos os dias pessoas com problemas de pele e uma série de outras patologias provocadas por toda a sujeira em que vivem. Com os mais novos, por exemplo, tratamo-los e poucos dias depois voltam a visitar-nos porque estão doentes outra vez. Adoecem com muita facilidade.”
Nas últimas semanas, o número de migrantes que chegou às ilhas do mar Egeu multiplicou-se. A sobrelotação de Moria repete-se nos campos de ilhas gregas mais pequenas como Samos ou Chios. Entretanto, o Governo grego anunciou segunda-feira um plano para devolver 10 mil migrantes à Turquia até ao final de 2020, número muito superior aos 1.800 que foram reenviados para aquele país nos últimos quatro anos e meio.
“O Governo grego e os líderes europeus devem assumir a responsabilidade e encontrar uma alternativa para esta crise: arranjar melhor alojamento para as pessoas e mudá-las. Se não for possível fazê-lo na Grécia, devem considerar fazê-lo noutro país da europeu.”
Também o autarca de Lesbos e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) pediram às autoridades gregas que “descongestionassem imediatamente” o campo de refugiados de Moria e que “acelerassem as transferências para o continente” previstas há várias semanas.
“As pessoas começaram a fazer de Moria a sua comunidade, como se fosse uma pequena vila. Significa que fomos incapazes como país e como União Europeia de disponibilizar as coisas básicas. Estão aqui demasiados meses e têm de fazer alguma coisa para continuar as suas vidas. É a prova de um sistema de receção que falou completamente, ou melhor, que nunca funcionou”, diz Anna. “E isso, por si só, também é uma tragédia. É trágico ver isto a acontecer.”