Internacional

Os israelitas procuram alguém pronto para a guerra mas que, ao mesmo tempo, a impeça de acontecer

De um lado há um homem “porreiro e aborrecido”, é possível ser-se ambos “ao mesmo tempo”; do outro há um homem que fomenta medos apenas para ser ele a resolvê-los, é possível que não seja suficiente para vencer. Israel vai a eleições esta terça-feira e há notícias falsas, contas fictícias nas redes sociais e escutas telefónicas a mexer com a campanha política de uma nação em que o “mito da excecionalidade” tem ramificações imprevisíveis

Benny Gantz, à direita o de Benjamin Netanyahu
À esquerda o cartaz de Foto Abir Sultan / EPA

Na parte de trás do autocarro 425, que há de terminar a sua marcha no mais antigo porto marítimo do mundo, Jaffa, vê-se impresso, da largura de todo o vidro, o rosto confiante de Benny Gantz, o antigo chefe de gabinete das Forças de Defesa de Israel de 59 anos que veio abalar aquele que parecia o caminho certo para o desenlace destas legislativas: mais um mandato para Benjamin Netanyahu (70, a mesma idade de Israel) e da sua coligação de partidos defensores de um Israel combativo.

A retórica beligerante atingiu nesta campanha níveis que há muito não se viam. O líder da extrema-direita libertária, Moshe Feiglin - que anda a tentar angariar votos jovens com um discurso de permissividade total, incluindo no que toca ao consumo recreativo de canábis -, disse recentemente que “qualquer pessoa que utilize a palavra ‘palestiniano’ já está a faltar à verdade”. Segundo uma análise do jornal Haaretz, o seu partido, o Zehut, pode mesmo acabar por ser a surpresa desta eleição, conseguindo até seis lugares no parlamento. Mas Gantz não tem as mais límpidas credenciais pacifistas e, apesar de falar de entendimento, vai sempre avisando nos seus discursos que a paz pode não ser possível.

Anshel Pfeffer, autor da biografia de ‘Bibi’, mancuniano com pais israelitas e líder incontestado da análise política local, a julgar pelo número de pessoas que lhe pediram entrevistas, resumia-nos no fim da semana passada o que pensava que vai passar-se esta terça-feira nas urnas: "É pouco provável que Gantz venha a vencer estas eleições, as pessoas querem segurança e querem que quem está à frente do governo garanta pelo menos isso. Diz que sim, que as pessoas estão fartas de Netanyahu, mas “não suficientemente fartas para colocarem as fichas em quem não conhecem tão bem”.

Energia não é coisa que falte a Benny Gantz e a sua personalidade mais acessível, que consegue encaixar nos discursos piadas autodepreciativas sobre o terrível sotaque quando fala inglês, parece estar a atrair as pessoas que esperam uma mudança, ainda que em Israel se vote na esperança que a mudança não mude isto tanto assim.

Gantz e Netanyahu são assim tão diferentes? “Bom, sim, o Gantz é um tipo decente”, aponta Anshel Pfeffer. E os eleitores não querem alguém decente? “É assim: as pessoas até podem dizer que o Netanyahu é um irascível, um bruto, um tipo sem muitos escrúpulos, mas é o ‘nosso’ irascível, o ‘nosso’ bruto, o ‘nosso’ tipo sem muitos escrúpulos. Além disso, Gantz é aborrecido. É possível ser-se porreiro e aborrecido ao mesmo tempo.” O homem que mais a fundo estudou o fenómeno ‘Bibi’ acrescenta ainda uma outra explicação: “Há os políticos que nos dão esperança e depois há outros que nos fomentam os medos apenas para serem eles a resolvê-los: é o caso de ‘Bibi’, um político nato”.

Notícias falsas, contas fictícias nas redes sociais usadas para disparar mensagens panegíricas ao atual primeiro-ministro e escutas onde se ouve que, afinal, a maior esperança da oposição estaria pronto a sentar-se num futuro governo liderado pelo Likud de ‘Bibi’, foram os temas que marcaram esta que é a última semana antes das eleições de 9 de abril. Pelo meio, notícias de morteiros que aterraram em cima da casa de uma família de seis num bairro residencial perto da capital, Telavive, e o espectro da eterna guerra com os palestinianos que voltou a contaminar a retórica política. Num dos bairros mais turísticos da cidade passamos por um abrigo público para quando as sirenes tocam a avisar que podem chover morteiros vindos de Gaza. É uma placa cor de laranja que mostra um boneco a correr escadas abaixo.

FOTO ANA FRANÇA

Pfeffer junta-se ao Expresso para um café já depois da meia-noite, esteve todo o dia a acompanhar a atualidade noticiosa - “só quero que estas eleições terminem” - e por ter vindo com os pais viver para aqui aos 17 anos conhece bem a psique israelita e como ela se compara com a britânica, que conheceu durante toda a adolescência, quase toda passada em Manchester, no Reino Unido. “Os países sofrem todos por alguma coisa. Há sempre alguma coisa no passado de cada nação que informa os traumas coletivos atuais de cada povo e nisso Israel não é exceção - há cinco anos havia autocarros a explodir nas ruas, é natural que as pessoas sintam que têm de proteger a sua forma de vida.”

O mito da excecionalidade judaica não o convence - “nunca fui a um país onde o povo se achasse banal” - mas preocupa-o aquilo que se faz com essa noção desmesurada de messianismo. “Olha para o Brexit. Os britânicos ainda têm dentro deles aquela noção de donos do mundo, de que nunca vergaram ao Hitler, que são estoicos, individualistas, regrados, com uma democracia que nunca foi tomada por uma ditadura. Em Portugal tenho a certeza que as pessoas ainda têm medo do fascismo e vão ter por mais algum tempo. Aqui também. Por mais algum tempo a retórica do medo vai continuar a ser importante.” Saul Bellow cita uma frase de um autor russo, Mikhail Agusrsky, no seu livro de 1976 “Jerusalém: Ida e Volta”, que ilustra bem este sentimento de exceção incutido no povo judeu: “Os judeus conseguem ser produtivos e eficientes desde que se cumpra um requisito muito estranho - os objetivos têm de ser estritamente irrealistas do ponto de vista atual”.

Tanto é importante que Netanyahu aparece nos jornais como “Mr. Security”, o “Senhor Segurança” - e isso ou é justaposto ao seu nome como ironia ou como elogio. Mas entre o que os políticos dizem e o que preocupa as pessoas fica a diferença que irá separar estes dois homens no resultado final. A pulverização política em Israel é impressionante. A estas eleições concorrem 47 partidos e só há 120 lugares no Knesset, o parlamento israelita. Muitas são as agendas em disputa e também por isso o que aqui conta é os números que os partidos mais pequenos terão e que peso podem ter ou não na viabilização de um governo.

Cartaz de campanha do Likud, liderado por Netanyahu
reuters

Em 2009, o Kadima, de Tzipi Livni, venceu a maioria dos lugares, mas como não conseguiu fundar uma coligação, a responsabilidade passou para o Likud de Netanyahu: iniciouse o reinado de ‘Bibi’, primeiro-ministro há dez anos. Livni anunciou há poucos meses que vai retirar-se da política e deixa assim vazio o lugar semimítico que ocupava: o de ter sido sempre a única voz conhecida a ter defendido abertamente a criação de um Estado palestiniano ao lado do Estado de Israel. Os mais sonhadores esperavam uma corrida política ao casulo ideológico ocupado por ela mas nada disso aconteceu.

Nos jornais europeus, o tema do conflito com os palestinianos domina o acompanhamento noticioso destas eleições, mas aqui isso não é assim tão importante. Mais uma vez, nenhuma exceção: “As pessoas preocupam-se em ter bons empregos, em ajudar as suas famílias, tal como em qualquer lugar do mundo. Claro que há os que se preocupam com o racismo, com a narrativa divisiva, mas para a maioria é mais importante terem na sua vida os dados adquiridos que sempre tiveram”, explica Anshel Pfeffer.

Se ‘Bibi’ perder não será por culpa da suposta guerra latente com os palestinianos. Sobre o homem que governa este pequeno país há dez anos pendem acusações de corrupção, abuso de poder e fraude que lhe podem complicar a vida junto de uma fação dos eleitores que, apesar de serem apologistas a todo o custo da defesa do Estado de Israel, sabem também que há outros candidatos capazes do mesmo mas com menos apontamentos no cadastro. “Os israelitas procuram alguém pronto para a guerra mas que, ao mesmo tempo, a impeça de acontecer - até ver, esse político é ‘Bibi’”, diz Pfeffer. Lembra-nos mais uma frase de Bellow: “Nas circunstâncias atuais, o que une a sociedade israelita é uma sensação de perigo comum e não um sentimento religioso de fraternidade”. Alguma coisa mudou?