Apontado como um dos mais fortes candidatos desde a sua primeira passagem, "Amour", novo filme de Michael Haneke, permitiu hoje ao cineasta austríaco entrar no lote restrito de realizadores que têm duas Palmas de Ouro no currículo.
Vencedor em 2009 (com "O Laço Branco"), Haneke repete o triunfo com a história de uma dura prova de amor no fim da vida. Em "Amour", não saímos do apartamento onde vivem Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), dois ex-professores de música octagenários.
Um dia, Anne sofre um princípio de enfarte que a deixa paralisada do lado direito. O marido cuidará dela, pacientemente, a partir daí. Ela fica presa a uma cadeira de rodas, depois à cama, até que chaga o fim. Mas este túmulo erigido por Michael Haneke, que foi um dos melhores filmes a concurso, é completamente impermeável ao sentimentalismo. O que está em causa não é a morte em si, mas antes a sua sublimação pela atitude do marido, num desfecho comoventíssimo e de compaixão.
Grande Prémio
A "medalha de prata" de Cannes, o prestigiado Grande Prémio do festival, é mais surpreendente e distingue outro filme de bom nível. O júri presidido pelo italiano Nanni Moretti premiou "Reality", do cineasta italiano mais valioso da sua geração, Matteo Garrone. Em "Reality", seguimos a lenta descida à loucura de Luciano (Aniello Arena num papel de se lhe tirar o chapéu), um peixeiro napolitano que se convence que vai entrar no "Grande Fratello" (o Big Brother italiano).
O problema é que Luciano troca demasiado cedo o mundo real pela realidade virtual da TV, perdendo o ganha-pão, os amigos e, por fim, a família. Enquanto isto, o "Grande Fratello" é um êxito ilusório que vai sendo rodado na Cinecittà ("Reality" é também uma inteligente reflexão sobre a morte do cinema italiano).
Resto de palmarés decepcionante
Os prémios restantes deixam muito a desejar, a começar pelo de Melhor Realização, atribuído ao mexicano Carlos Reygadas por "Post Tenebras Lux". Na realidade de Reygadas distorcida por lentes anamórficas e permeável à entrada de um diabrete vermelho animado, não é fácil distinguir o que está em causa atrás do seu gesto artístico.
Talvez seja a oposição de dois mundos, de duas classes sociais, a de Juan, que vem da grande cidade e se instalou numa quinta da província, e a dos seus empregados, num confronto surdo que trará consequências fatais para o primeiro. Fugindo de uma narrativa clássica, Reygadas acaba por deixar em cima da mesa um tratado de opções de mise en scène maneiristas, indigestas, que prejudicam o resultado. O júri teve diferente opinião.
Interpretações
Numa categoria em que é gritante não ver reconhecido o trabalho de Jean-Louis Trintignant por "Amour", ou as onze personagens compostas por Denis Lavant em "Holy Motors", também não surpreende o prémio de Melhor Ator ao dinamarquês Mads Mikkelsen por "The Hunt", novo filme de Thomas Vinterberg, que voltou a trazer à competição o tema da pedofilia.
Mikkelsen defende com brio a sua personagem: a de um pacato educador infantil que é confrontado com uma injusta acusação de pedofilia, tornando-se no 'monstro' da pequena comunidade em que vive.
Tudo começa com o boato sussurrado de uma menina (a filha do melhor amigo do educador) que, depois de ver acidentalmente uma imagem pornográfica, transfere essa perturbação para uma mentira que envolve o protagonista (afirmando que o homem lhe mostrou o pénis erecto).
Não se faz tardar a resposta chocante dos adultos, com consequências catastróficas para o educador. Vinterberg vem dizer-nos que as crianças também mentem - num filme que se ergue a partir de um trabalho de pura especulação.
Na categoria de Melhor Atriz, surgem as distinguidas atrizes romenas Cristina Flutur e Cosmina Stratan por "Au-Delà des Collines", de Cristian Mungiu (autor da Palma de Ouro de 2007, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias").
A personagem de Cristina Flutur, Alina, volta da Alemanha para a Roménia para reencontrar a sua melhor amiga do orfanato, em que ambas cresceram. Mantém por ela uma profunda ligação sentimental (e erótica: a homossexualidade recalcada das raparigas é a chave do filme). Mas a personagem de Cosmina Stratan, Voichita, vive agora reclusa num severo mosteiro ortodoxo em que a atualidade parece ter regressado aos tempos medievais (Mungiu inspirou-se num fait divers registado na Moldávia). Alina acaba por entrar em guerra com aquela instituição, num filme inchado de metáforas sobre a intolerância religiosa. Mungiu venceu também na categoria de Melhor Argumento.
Já o prémio do júri atribuído a "The Angels' Share", de Ken Loach (o veterano britânico apresentou-se a concurso pela Palma pela 11ª vez: é um recorde), dá provas claras de incompetência a este jurado. Ao estilo de Loach, esta crónica realista sobre um grupo de amigos de Glasgow, à beira da delinquência, que descobrem uma nova esperança para a vida depois de uma visita a uma destilaria de whisky (revelando-se um deles dotado para apreciar a arte) é incapaz de descolar de uma caricatura social com boas intenções, mas académica. Nada traz de novo ao percurso de Loach, muito menos ao cinema.
Os perdedores
O cinema francês, que tinha três apostas muito distintas a concurso ("Amour", co-produção que envolve a França, não entra nestas contas), sai de Cannes de mãos a abanar. A aposta comercial ("De Rouille et d'Os", de Jacques Audiard) foi ignorada, bem como o secreto e muito mais inteligente "Vous n'Avez Encore Rien Vu", de Alain Resnais, que merecia ter tido outra atenção.
Mas a grande e incompreensível falha deste palmarés acaba por ser "Holy Motors", obra-prima de Leos Carax, o mais inventivo de todos os filmes a concurso e um dos mais amados pela crítica internacional.
Também perderam David Cronenberg, com "Cosmopolis" e Wes Anderson, com "Moonrise Kingdom", dois filmes que camuflaram uma participação norte-americana decepcionante. Igualmente excluído, noutra decisão que se lamenta, foi "In Another Country", belíssimo filme de Hong Sang-soo, com Isabelle Huppert: não há meio dos festivais internacionais colocarem o realizador sul-coreano no lugar que ele já merece.
Cannes 2012 foi o festival mais chuvoso e ventoso da última década - facto meteorológico pouco comum para esta época na Côte D'Azur. Selou no topo da pirâmide um filme superior com a Palma de Ouro, mas esqueceu-se de Carax. O festival terminou esta noite com uma cerimónia pálida e um palmarés que, em termos gerais, foi cinzento, a condizer.
(mais informações em www.festival-cannes.com)