Ao sexto filme, Jacques Audiard recebe na sua galeria a atriz que fez de Edith Piaf em "La Môme". Marion Cotillard chama-se Stéphanie em "De Rouille et d'Os". Na primeira vez que a vemos, Audiard mostra-nos as suas pernas. Não é por acaso: é através delas que ela chama a atenção de Ali (Matthias Schoenaerts), marginal e pai solteiro, porteiro de discoteca, segurança de uma grande superfície e mais tarde lutador de combates de boxe clandestinos. Stéphanie, por seu lado, coreografa orcas no parque aquático de Marineland, em Antibes, sul de França.
Acidente
Num acidente de trabalho, uma das baleias assassinas fecha a bocarra e deixa Stéphanie com as duas pernas pelos joelhos. Será a partir daqui que Audiard, inevitavelmente, tombará nas suas obsessões comuns, nos seus homens um tanto femininos e nas suas mulheres um tanto masculinas: Ali é frágil para lá da sua aparência robusta e aprende a bater-se até ao fim; Stéphanie é forte mas perde gás quando o destino lhe passa a perna. Já era assim com o pequeno marginal Tahar Rahim de "O Profeta". Já assim era com a surda Emmanuelle Devos de "Nos Meus Lábios". Com esta adaptação livre de duas novelas do canadiano Craig Davidson, Audiard não se afasta muito do seu eixo. Fica com uma história de amor violenta nas mãos: ele é um lutador voraz, ela é uma deficiente com duas próteses e andar de Robocop.
Distância
São contudo tímidas as tentativas de Audiard em correr riscos sérios. "De Rouille et d'Os" tende a derreter a distância glacial dos seus primeiros filmes. Aproxima-se mais das personagens. A individualidade acaba lentamente por sublimar-se no melodrama (assinale-se a composição de Alexandre Desplat, que também assina partituras em "Moonrise Kingdom", de Wes Anderson e em "Reality", de Matteo Garrone, também em competição) e filme muito deve a Marion Cotillard, que impressiona pelo seu duplo jogo de virilidade e sedução - e impressiona mesmo: o problema de "De Rouille et d'Os" não vem dos atores. As cenas de sexo entre Ali e aquela Stéphanie de dois cotos tatuados, além dos 'efeitos especiais' que exigiram, são prova de superação de uma adversidade erótica que tinha tudo para tombar no embaraço. A cena em que Ali salva a vida de Sam, o seu filho de 5 anos, arrancando-o daquele uterino lago de gelo, é um momento crucial em que ele assume finalmente o papel de pai que até então não fora.
Fórceps
Não, o problema de Audiard é outro: é uma questão de tom. A sua gravidade - que é toda uma proposta de dramaturgia - é um elefante a saltar de nenúfar em nenúfar. Não se livra desse tom, Audiard. Provavelmente, é preciso começar a levantar a hipótese de que ele não sabe fazer melhor. Em "De Rouille et d'Os", filme de momentos intensos aqui e ali e de atores entregues a essa intensidade, sentem-se passar as páginas do argumento uma a uma, pesadas, como uma força imposta e da qual o filme não se livra, até que Ali saia da ficção campeão de kickboxing: mas aqui, já não se acredita nem um segundo. Audiard precisa de fórceps para filmar. É este o seu método, o seu orgulho, a sua arma de controlo. Nos jornais franceses, fala-se de obra-prima. Fala-se do grande cineasta que tarda, e de mais, a convencer-nos. Audiard pode até voltar ao palmarés de Cannes mas nunca vimos no seu trabalho - e em "De Rouille et D'Os" voltamos a não ver - mais do que o tarefeiro disciplinado nos limites que se autoimpôs, o cineasta esforçado de uma nouvelle qualité.
De Rouille et d'Os de Jacques Audiard Competição