ARQUIVO Cannes 2012

A revolta de um escuteiro

Cannes 2012 começa bem e cheio de panache, com um dos mais belos filmes de Wes Anderson: "Moonrise Kingdom".

Francisco Ferreira, enviado a Cannes (www.expresso.pt)

Wes Anderson nunca foi escuteiro mas, provavelmente, gostava de ter sido. Gostava de ter vivido a história de amor dos protagonistas de "Moonrise Kingdom", dois adolescentes, Suzy e Sam, que trocam um primeiro beijo na praia, ao som de "Le Temps de L'Amour", um hit de Françoise Hardy - é, para já, um dos momentos altos deste festival.

Estamos numa ilha imaginária da Nova Inglaterra. Em 1965. Um narrador avisa que vêm aí uma tempestade. Descobriremos depois de que tempestade se trata quando Suzy Bishop (a debutante Kara Hayward parece uma versão em miniatura da Gwyneth Paltrow de "Os Tenenbaums"), de 12 anos, desaparece de casa.

Fuga

Saberemos depois por um flash-back que preparou uma fuga com Sam Shakusky (Jared Gilman), um escuteiro da sua idade, especialista de sobrevivência em condições adversas debaixo do seu gorro de pele - ele é órfão e o primeiro amor de Suzy. Desata toda a gente à procura dos miúdos: os pais Bishop (Bill Murray e Frances McDormand), o polícia local (Bruce Willis), o 'chefe-escuta' de Sam (Edward Norton) e ainda uma temível assistente social que toma conhecimento do caso via telefone (Tilda Swinton).

Entretanto, já o cineasta texano pôs em marcha um dos seus filmes mais virtuosos: da maravilhosa casa pop dos Bishops, um inventário de bibelots afectivos (gira-discos, binóculos, livros de aventuras, megafones...) em que todas as divisões comunicam umas com as outras, passamos a uma floresta acidentada em que os dois apaixonados perseguem uma antiga pista índia como se tivessem encontrado o seu mini-western, ameaçado pelo ciclone que há-de vir.

Aventura

Wes Anderson é um cineasta destemido e faz filmes aventureiros muito mais amargurados do que a superfície de comédia que eles têm. Desejos de evasão e pulsões desesperadas, por vezes até suicidas, alimentam lá no fundo a mecânica de uma 'realidade decorada' da qual Wes detém o copyright. Falamos de personagens desajustadas com a realidade. Elas procuram aventuras míticas que lhes transformem os dias.

Antes de Cannes, surgiu aquele trailer de "Moonrise Kingdom" na Net - e tornou-se viral. Há quem pense que já estava aí tudo. Há quem pense que Anderson já corre o risco de copiar-se. No entanto, "Moonrise Kingdom" está cheio de novidades. Traz-nos na obra de Anderson, pela primeira vez, dois teenagers que se apaixonam e lutam contra o tempo, pois são ainda demasiado novos para aguentar o peso desse sentimento. Tudo vai desvanescer lentamente, como tudo desvanesce no cinema de Anderson. O tempo é o seu maior inimigo.

Revolução

Mas "Moonrise Kingdom" diz-nos outra coisa, que é preciosa: se os anos 60 fracassaram, se as suas utopias se perderam, não deixam contudo de poder ser visitadas, vividas, reinventadas cinco décadas depois pela mão de dois miúdos de 12 anos e pelo génio de um dos grandes criadores cinematográficos do nosso tempo.

"Moonrise Kingdom" não fica longe de "Os Tenenbaums" e de "Um Peixe Fora de Água". Ganha em eficácia a "The Darjeeling Limited" e em comoção a "O Fantástico Senhor Raposo", com este "amor ferido", como lhe chamou Bruce Willis (ele que parece eternamente destinado a salvar o mundo das suas tormentas). Anderson aumentou a tensão, a crueldade, o lirismo.

Ao sétimo filme, inventou um reino na praia de um primeiro amor e desembarcou pela primeira vez na competição de Cannes. Ofereceu ao festival uma excelente abertura.

"Moonrise Kingdom" de Wes Anderson (Competição)