ARQUIVO Cannes 2012

E se no palmarés entrasse Leos Carax?

O novo filme do cineasta francês, o mais forte de Cannes, chama-se "Holy Motors". O tempo do cinema não tem fim.

Francisco Ferreira, enviado a Cannes (www.expresso.pt)

Outrora existiu um tempo em que os motores estavam atrás do cinema. Estavam atrás do "Lights, camera, action". Sagrados motores. "Mas o mundo já não quer saber de máquinas visíveis", ouvimos às tantas em "Holy Motors", o meteoro incandescente que Leos Carax mostrou no Festival de Cannes.

"Holy Motors" é o filme mais poderoso do festival, a única obra-prima da Croisette em 2012. Desdobra-se como uma boneca russa. Reinventa-se de plano em plano. É um falso filme de sketches sobre a trajectória de um ator, Sr. Oscar, que é uma trajectória de vida. Numa jornada de loucos, até à madrugada do dia seguinte, Sr. Oscar veste a pele de várias personagens. Encontra outros corpos e outros fantasmas. Na soma de todos eles, é a persona de Leos Carax que se esconde atrás, num filme que se deixa levar pelo desejo.

Limusinas

O desejo é uma limusina. No fantasmagórico monstro branco que o transporta e que Celine/Edith Scob conduz, o Sr. Oscar não passa desapercebido. Oscar está a trabalhar, sabe-se depois: aquela limusina é também um camarim. Vemo-lo na pele de um banqueiro todo poderoso, na primeira das performances (são nove) que ele tem para cumprir.

Na limusina, o Sr. Oscar passa de rico a pobre quando se mascara de velha mendiga corcunda. É ciber-criatura numa erótica coreografia com artes marciais em motion capture (é o momento favorito de Kylie Minogue, que faz parte do elenco). Anda nos esgotos de Paris e pelos esgotos chega ao cemitério Père Lachaise, raptando uma modelo (Eva Mendes) que o excita e que ele acaba por levar aos ombros para o subsolo (Carax tinha pensado numa versão de "La Belle et la Bête", com Kate Moss).

O Sr. Oscar é ainda pai de família preocupado pela timidez da filha adolescente. Acordeonista de uma banda de vagabundos profanadores de igrejas num momento de Entr'act. Gangster que mata e será morto pelo seu próprio duplo. Vestirá a pele de velho milionário à beira do último suspiro num quarto de hotel. Por fim, a uma casa de bairro social periférico voltará, novamente como pai de família. Momento à la Jacques Demy? Quase: a família, mãe e filha, são duas macacas que o Sr. Oscar abraça antes de nos dizer adeus à janela, com melancolia.

"Beauté du geste"

Quando a noite já vai longa e o trabalho chega ao fim, o Sr. Oscar receberá um maço de notas. Ganhar a vida, não mais do que isso, foi o que o moveu? Ou moveu-o antes a performance, a comoção e a pura "beauté du geste", a que está nos olhos de quem vê (como nos diz um Michel Piccoli de voz grave), se é que ainda há por aí alguém que a veja?

Beauté du geste é uma expressão de Godard que Carax reutiliza. É também a fatalidade de um cineasta que, de Godard, se proclamou em tempos herdeiro ilegítimo (não é Carax, numa leitura anacrónica, o último filho da Nouvelle Vague?). Por Godard, chegou Carax ao "Boy Meets Girl" (título do seu primeiro filme) e ao cinema clássico americano. Com Godard, tornou-se o cinema para Carax na sua maior e exclusiva obsessão. Isto pode parecer demasiado lírico, com falta de consistência, mas é mesmo assim: Carax é um daqueles cineastas que só acredita num cinema arrancado à própria vida, como se a vida do cinema dependesse. Foi por isso que, quando na conferência de imprensa lhe perguntaram pelo público, Carax disse não saber do que se tratava: "O público é um grupo de pessoas que vai morrer dentro de pouco tempo. Não faço filmes públicos, faço filmes privados."

Denis Lavant

O ator que interpreta Sr. Oscar não é qualquer um. É também atleta, performer, artista de circo e monstro em palco, um poço de força física: chama-se Denis Lavant. Acompanha Carax desde o início. Foi o seu alter-ego em "Boy Meets Girl" (1984), em "Mauvais Sang" (1996), em "Les Amants du Pont Neuf" (1991). Lavant não entrou em "Pola X" (a longa-metragem anterior de Carax, realizada há 13 anos) mas reencontrou Carax no segmento "Merde", um dos três episódios de "Tóquio!". Em "Holy Motors", Lavant dá corpo a onze personagens (!), creditadas no genérico. Uma delas é continuação daquele segmento.

Mas o que impressiona nas metamorfoses de Lavant não é de ordem estatística. É antes de ordem física, numa primeira leitura: conta a emoção, o movimento, a pantomima, a consciência de um corpo no espaço. Conta também, e para ir mais fundo, uma metamorfose de ordem afectiva já que "Holy Motors", experiência tão mais enriquecedora quanto mais se conhece a obra de Carax, desenha uma matriz que revisita todos os filmes anteriores.

Damos um exemplo. Durante a viagem do Sr. Oscar, há um acidente de limusinas que não fazia parte da agenda. Lavant encontra então uma mulher que ele conheceu e que responderá por dois nomes, Eva e Jean (a Jean Seberg de "A Bout de Souffle", de Godard?). Ela é uma famosa atriz. Concede-lhe 20 minutos para recuperar 20 anos e não lhes sobreviverá. Estamos no telhado da Samaritaine, lendário armazém comercial de Paris, hoje em ruína, perto do lugar onde Denis Lavant e Juliette Binoche vagueavam em "Les Amants du Pont Neuf", realizado há 20 anos.

Se Carax visita o seu próprio cinema e o cinema todo nestes aller-retours, é curioso notar que, no suposto lugar de Juliette Binoche (para quem o papel foi escrito) surge Kylie Minogue. A sofisticação digital dos clips da cantora australiana, que a transformaram de produto pop de consumo em produto pop de culto, é matéria de trabalho para Carax. Kylie cantará então uma canção escrita por Carax e por Neil Hannon (dos The Divine Comedy) com "essa voz saída de um corpo de elfo que é a infância da arte" (Carax dixit) num momento de emoção e fusão da vida e dos filmes do cineasta. Um momento merecedor de uma palma.

Cinema perdido, cinema reencontrado

Será que "Holy Motors" chega ao palmarés de Cannes? Pedir o ouro é pedir muito ao júri de Nanni Moretti? Como dizem os franceses, "on s'en fout": "Holy Motors" é o melhor filme de Cannes. É um filme sobre o cinema - figurado numa garagem sagrada ("holy") em que as limusinas, finalmente abandonadas pelos seus condutores sem rosto (a Edith Scob de "Les Yeux Sans Visage"), acendem os quatro piscas e conversam, sonhando por melhores dias. Não lamentam as limusinas, afinal, aquelas inscrições tumulares que vimos no Père Lachaise, em que os nomes dos mortos são agora substituídos pela inscrição "consulte o meu site"? Não estão tristes as limusinas, enfim, com o estado de um cinema que se tornou virtual?

Dizer isto, contudo, parece resumir "Holy Motors" a uma homenagem ao cinema, a um sentimento passivo que não traz consolo nem encontramos aqui. "Holy Motors", pelo contrário, provoca, reage, autocritica-se, entrega-se com generosidade a quem o descobre. Diz-nos que enquanto a união sagrada entre um filme (privado) e um espectador (solitário) for um movimento perpétuo, o tempo do cinema não tem fim. Não parece perpétuo o movimento das imagens que abrem e fecham o filme, as do cronofotógrafo Étienne-Jules Marey (1830-1904), um pioneiro da história do cinema?

Mas Carax, ele que assina sob pseudónimo e inventa personagens que são anagramas do seu verdadeiro nome (Alexandre Oscar Dupont de Nemours), vai ainda mais longe no prólogo de "Holy Motors": é ele, vestido de pijama, quem descobre uma porta escondida no seu quarto, levando-nos por ela a uma sala de cinema de outros tempos, cheia de espectadores-fantasma (só a partir daí arrancam os trabalhos de Sr. Oscar). Para quê, afinal?

Em "Holy Motors", Carax abandona um casulo chamado cinema para depois voltar a edificar o seu mito, em 115 minutos maravilhosamente livres. Somos testemunhas desse gesto. Destruir para construir, levar a sétima arte às suas origens e encontrar pelo caminho a porta de regresso que a traga de volta ao contemporâneo: se esta é a maior ambição que se depara ao cinema de hoje, Carax acerta na mouche.

Holy Motors de Leos Carax Competição