Já se sabe ao que se vai quando se vai para um filme de Ulrich Seidl. O primeiro plano de "Paradise: Love" confirma-o, é uma provocação pura: numa pista de carrinhos de choque, um grupo de mongolóides diverte-se. Não são propiamente uns Niki Laudas do volante. A situação é embaraçante e os piões filmados em grande plano. Depois acaba o tempo da ficha. Eles ficam tristes. Quem observa o espectáculo, de ar consternado? Teresa (Margarethe Tiesel). É assistente social, bem provável, mas não se sabe ao certo. Quanto aos mongolóides, não mais os veremos.
Teresa tem uma filha e uma irmã. Seidl começou por fazer um filme de 5 horas (que estava pronto) sobre três mulheres da mesma família. Decidiu depois dividi-lo em três partes, um para cada protagonista, numa trilogia sobre o Paraíso: a este primeiro tomo, chamou de "Paraíso: Amor". Seguir-se-ão um "Paraíso: Fé" (diz-se que já seleccionado por Veneza) e um "Paraíso: Esperança". É um "paraíso à Seidl": o cinismo espera ao fundo do túnel.
Quem é Seidl? É preciso dizê-lo num parágrafo: nenhum filme do austríaco se estreou em Portugal. Seidl foi lançado há dez anos por "Dog Days" depois de um longo percurso nos documentários que começou nos anos 80. Tornou-se o cineasta mais internacional do seu país na última década depois de Michael Haneke. As suas personagens tombam recorrentemente em situações humilhantes. Procura chegar-se a esse buraco negro de boas e más interpretações que dá pelo nome de condição humana. Os seus compatriotas austríacos - e a Áustria, em geral - são os 'inimigos prediletos', modelos dessa humilhação. O que está em causa? Questões de economia, sobretudo, tal como Seidl o demonstrou em "Import/Export". O colapso do ocidente capitalista e o desespero do leste ex-comunista da Europa, por exemplo. Seidl é impiedoso. Especializou-se em passar pelo cinema, por vezes de forma gritante, este estado de desconforto.
Uma questão de economia
Voltamos a Teresa, agora sim. E à economia. Teresa parte de férias (depois da cena dos mongolóides) para um resort africano. Parte só, com a sua pele triste, o seu corpo obeso, abandonado. Eventualmente, encontra outras austríacas da sua idade na mesma peregrinação. O suaíli ouvido diz-nos que estamos na África Oriental. Mais concretamente no Quénia, onde Teresa vai aprender o "Jambo" ("Olá"), o "Hakuna Matata!" ("Sem problema!") - é um manual básico de sobrevivência. O que procura uma austríaca cinquentona, obesa, solteira, num resort paradisíaco do Quénia?
Nas praias, há uma corrente vigiada por guardas que separa o turismo dos locais com bijuterias artesanais para vender. Uma linha que separa a Europa da África. Têm mais, para vender, os quenianos: o corpo. Teresa é tímida, a experiência sexual tem ar de ser uma primeira vez. Inicia-se. Vai querer desejar e até amar. Vai querer que a desejem. E que a amem. Missão impossível. Os quenianos, preparados, poliglotas, entregues à sua sorte, sabem o que está em jogo. Teresa não sabe: no balcão do bar, troça de um preto e ensina-o a dizer "banha de porco" em alemão. Mais tarde, é ela que se 'sente uma porca' depois de pedir o que os quenianos nunca lhe poderão dar: "não podes ser terno?"
Uma questão de repugnância
Seidl, uma vez mais, revolve inconscientes e interditos dos espectadores - e depois atira-lhes com isso à cara. Muitos cineastas tentam trilhar este caminho chocante e poucos são os que não acabam por tombar no grotesco, na pornografia social. Seidl é mais subtil. A sua escola austríaca, glacial, ensinou-lhe até onde pode ir: por isso é ele um cineasta da competição de Cannes.
Seidl começa o filme com um plano de mongolóides e acaba-o com um plano de cartão postal a coroar esta sua sátira pós-colonialista. O que dizer desta prostituição entre o continente branco e o negro, entre o turista afortunado e o africano explorado? Que, para Teresa, é uma tristeza sem fim. Que, para Seidl, é uma nova entrada no território que há muito alimenta o seu trabalho: o da repugnância
Paradise: Love de Ulrich Seidl Competição