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Maia é uma pessoa não binária e contou a vida em “Género Queer” — a sua história tornou-se no livro mais banido nos Estados Unidos

Maia Kobabe desenhou a sua verdade e o livro tornou-se o mais contestado nos EUA: proibido em escolas, chegou a ser chamado de “pornográfico”. A jornada de uma pessoa não binária é escrita com pronomes neutros e chegou a Portugal em junho. Como se traduz uma obra como esta para português? A tradutora garante: com a ideia de que “a língua está sempre a evoluir”

Expresso

Maia Kobabe não sabia descrever bem como se sentia. Em muitos momentos, uma pessoa deslocada, talvez. As pessoas à sua volta também não percebiam aquilo que descrevia. A jornada em busca da sua identidade de género transformou-se quando começou a expressar esses sentimentos em desenhos, pedaços de banda-desenhada que partilhou nas redes sociais.

Kobabe, que cresceu em São Francisco, na Califórnia, assumiu-se em 2016 como pessoa não binária — cuja identidade não se encaixa na divisão binária de género homem/mulher — e usa pronomes neutros. Estes desenhos, estas histórias, fizeram sentido para muitas outras pessoas; “começaram a responder-me coisas como ‘não fazia ideia que mais alguém se sentia desta maneira, não sabia que existiam palavras para descrever isto’”, disse ao “New York Times”.

A história desenhada de vida de Maia transformou-se eventualmente em “Género Queer”, uma novela gráfica editada originalmente em 2019 nos Estados Unidos — que chegou a Portugal em junho, mês do orgulho LGBTQI+, pela ASA —, um livro honesto, e para muitos altamente relacionável, sobre “a sua jornada para se identificar como pessoa não binária e assexual e para se assumir perante a sua família e a sociedade”, diz a sinopse.

Maia Kobabe queria que o livro chegasse a adultos e jovens adultos que tivessem questões sobre a sua identidade de género, e também aos que são próximos dos que se questionam. Aconteceu: no espaço de um ano, “Género Queer” passou de uma pequena tiragem de cinco mil cópias para chegar a uma quarta edição e receber várias distinções, entre elas um Stonewall Book Award, importante prémio para literatura LGBTQI+, e um Alex Award, prémio da American Library Association para livros escritos para adultos que acabam por ganhar destaque especial entre jovens dos 12 aos 18 anos.

"Género Queer" foi editado em Portugal em junho, pela ASA.
LeYa

Um livro para todos. Mas nem todos concordaram. Em 2021, acendeu um debate por todo o país, depois de pais exigirem que fosse retirado de várias das bibliotecas escolares onde tinha surgido ao longo do último ano. A contestação estendeu-se a vários estados, como a Florida, Texas, Virginia, Alasca, Carolina do Norte e do Sul, entre outros; e “Género Queer” acabava proibido em perto de 50 distritos escolares, em particular nos estados republicanos. Henry McMaster, governador da Carolina do Sul, definiu o livro como “obsceno e pornográfico”, “provavelmente ilegal”.

O livro inclui nudez em algumas páginas, como aquela que ilustra o primeiro papanicolau feito por Kobabe ou outra em que tem fantasias com homens que surgem desenhados nus. Ilustram-se também temas como a masturbação, a menstruação, a descoberta de fantasias e brinquedos sexuais, o uso de coletes para esconder o peito. Mas Kobabe refere que nunca teve em mente um público mais infantil ao escrever o livro: “escrevi-o, acima de tudo, para os meus pais (…) para tentar comunicar com a minha família, para que me entendessem a um nível mais profundo”, disse numa entrevista citada pelo jornal “Folha de S. Paulo”.

“O tema do género toca em identidade e na sexualidade, todas essas coisas. É difícil explicar totalmente, eu acho, como a identidade de género pode impactar todas as facetas da vida de um adulto sem tocar pelo menos um pouco na sexualidade. Não queria fugir disso”, defendeu em entrevista à NPR.

Maia Kobabe, de 34 anos, publicou "Género Queer" em 2019.
Divulgação

“Género Queer” é hoje o livro mais banido nos EUA

Uma história de vida real tornou-se o livro mais banido e contestado nos Estados Unidos, de acordo com a American Library Association. O que acontece na mesma altura em que isso também tem sucedido com outras obras focadas na experiência de pessoas negras ou LGBTQI+, por exemplo, refere este grupo de promoção de bibliotecas e educação literária.

Um relatório de setembro de 2022 da PEN America, já tinha noticiado o Expresso, indica que no ano letivo anterior tinham sido registados cerca de 2532 livros banidos nos EUA, num total de 1648 títulos visados. A tendência estendia-se a 32 estados, 138 distritos escolares e 5048 escolas. Livros com temas ou personagens LGBTQI+ foram os mais proibidos (674 títulos proibidos), seguidos daqueles com pessoas racializadas como personagens centrais (659).

Maia Kobabe mostra preocupação: “quando se remove estes livros da estante ou são contestados publicamente numa comunidade, está-se a dizer a qualquer jovem que se identificou com essa narrativa que ‘não queremos a tua história aqui’”, lamentou ao New York Times.

Sente apreensão com o impacto que este tipo de proibição possa vir a ter em jovens que estejam a questionar a sua identidade ou tenham experiências distintas às de quem levanta essas contestações: “crianças com dificuldades [em questões de identidade] disseram-me que este livro os ajudou a falar com os pais”, escreveu num ensaio na NPR. Mas garante continuar a escrever sobre pessoas trans, queer ou não binárias. “Certas partes do país podem estar obcecadas em censurar-me, mas eu não me vou censurar”.

Como se traduz um livro com linguagem neutra para português? “A língua portuguesa não é nem nunca foi estática. Está sempre a evoluir”

“Género Queer” chegou a Portugal três anos depois de ter começado a fazer furor no mercado literário norte-americano. Editado em junho, foi uma das apostas das editoras portuguesas para o mês do orgulho LGBTQI+ — o “Q” nesta sigla significa, precisamente, queer, uma palavra abrangente que descreve e engloba todas as identidades sexuais e de género distintas da heterossexual e cisgénero (pessoa cuja identidade de género é idêntica ao sexo atribuido à nascença).

Para a tradutora Elga Fontes, responsável pela adaptação da obra em Portugal, este livro é “um exercício de empatia”. “Permite-nos entrar em contacto com experiências que muitas pessoas têm, mas com as quais nem sempre convivemos, seja porque não há informação nos média ou em outros veículos de informação sobre o que é uma pessoa debater-se com a identidade de género”, diz ao Expresso.

Mas como se traduz uma obra como esta (que recorre a linguagem neutra em grande parte das páginas) para a língua portuguesa, um idioma tão apoiado nas marcas de género? “Recebo muitas vezes essa pergunta e acho que há uma ideia errada sobre este trabalho, porque este livro nem sequer se aproximou de ser um dos dos mais difíceis que já traduzi”, explica Elga Fontes.

“Para onde é preciso usar linguagem neutra, há muitas alternativas que são fáceis de usar”. A tradutora explica que, inicialmente, optou por não usar pronomes de qualquer género, porque Maia “estava a debater-se junto com a sua identidade” e para que “a luta interna fosse manifestada de uma forma que não estivesse logo associada a pronomes. Mais para a frente, quando Maia aprende o que são os pronomes neutros de género, começa a aplicá-los”.

Ao longo de parte da obra, foram usados os pronomes elu/delu, a formulação mais próxima ao they/them, habitualmente usado em inglês em referência a algo ou alguém sem género definido. “Não vi motivo para arranjar alternativa, visto que em português já existe o elu/delu. Funciona muito bem, só não é ainda [tão] convencional”, justifica Elga Fontes.

A tradução do livro recebeu, porém, um cuidado redobrado: uma revisão do texto para linguagem neutra, algo ainda pouco habitual no mercado editorial português. “Existia esse cuidado de respeitar os desejos de Maia, existe até uma nota de editor nesse sentido, para reforçar essa ideia”, esclarece Marta Maia da Costa, a trabalhar no grupo editorial LeYa e responsável por esta verificação.

Além de elu/delu, são também introduzidos ao longo do livro os pronomes spivak (e, em, eir - apenas as terminações dos pronomes they, them, their em inglês), popularizados pelo matemático norte-americano Michael Spivak e usados maioritariamente em inglês: em vez de “ele” ou “ela”, sugere simplesmente dizer-se “e”. A primeira utilização de uma versão primária destes pronomes remonta a 1890.

Adaptar esta parte para português não foi complicado: “na edição italiana, por exemplo, decidiram manter a frase em inglês e depois fizeram uma nota com a tradução em baixo. Cá, nós tentamos adaptar para que fosse o mais fluido possível, como se estivéssemos realmente a ter uma conversa em português”. “Pensamos sobre como é que poderia ser acessível para leitores portugueses, especialmente aqueles que nunca se tinham deparado com este exercício”, acrescenta a revisora ao Expresso.

Para a tradutora e a revisora, este trabalho cuidado “de equipa” é pertinente. “Acima de tudo, este livro é um guia: além de mostrar a experiência de Maia, também explica a questão da linguagem”, refere Marta Maia da Costa. “Posso enumerar 500 motivos que justifiquem a pertinência disto, mas eu vou mencionar aquele que toda a de que toda a gente fala: respeitar a vontade da pessoa que escreveu o livro”, completa Elga Fontes.

“A língua portuguesa não é nem nunca foi estática. Está sempre a evoluir (…). Se uma pessoa escreve um livro e usa linguagem neutra, eu como tradutora vou usar linguagem neutra em português. Se é a vontade da pessoa que escreveu o livro, é o que vai acontecer na tradução”, fundamenta.

A questão da utilização de linguagem neutra ainda não reuniu consenso entre os especialistas. Mas vão-se alinhando numa perspetiva: “a linguagem é muito mais do que a norma” e dizem ser um facto inegável que as “línguas mudam constantemente”, como notam linguistas neste artigo do Expresso sobre linguagem inclusiva.

Neste sentido, Rui Sousa Silva, coordenador do Centro de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, argumenta que cada falante da língua, seja qual for o seu género, tem o direito de rever-se na linguagem que usa”. “A identidade de género é muito fluída e ela materializa-se de variadas formas. Isto obriga a que se reflita também sobre a linguagem, porque a linguagem é usada para as materializar”, diz o docente.

Maria Antónia Coutinho, investigadora do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL), argumenta no mesmo sentido: “é bastante consensual que a língua muda através dos usos (…). Se os contextos afetam a forma como nós usamos a língua e se [adaptamos a linguagem] em alguns contextos, portanto, também podemos fazê-lo a propósito desta questão da inclusão”.

Ilustração de uma das páginas de "Género Queer", na versão original.
Maia Kobabe, editora Lion Forge

“Hoje em dia fala-se muito em censura e na alteração das palavras do autor para ser conivente com sensibilidades. Se as pessoas gostam tanto de abanar a bandeira da censura para tanta coisa que não é censura, que se abane para isto também”, refere a tradutora de “Género Queer” em referência à polémica à volta do revisitar de alguns clássicos por parte de editoras norte-americanas.

Sobre o debate acerca da utilização destes pronomes na língua portuguesa fazer ou não sentido, Elga Fontes diz que “não tem lógica haver essa necessidade de discutir se uma pessoa tem o direito ou não a existir com dignidade”. “O que tem existido não pode ser classificado como debate”, considera, pela falta de representação daqueles que “argumentam a favor da inclusão de uma linguagem mais neutra”.

O trabalho por um mercado literário português mais inclusivo (impulsionado pelos jovens)

A chegada a Portugal de “Género Queer” é apenas um exemplo da maior diversificação de géneros literários e temáticas tratadas nesses livros a ganhar espaço no mercado editorial nacional. Muito se deve às redes sociais: as comunidades de leitores que foram surgindo organicamente em espaços como o Instagram ou o TikTok têm revolucionado o setor e, com jovens a impulsionar esta literatura, tem vindo a ganhar um espaço cada vez maior a nível global.

Só em Portugal, como o Expresso já tinha dado conta, o mercado atingiu no ano passado o maior volume de faturação desde que os dados começaram a ser auditados, há 15 anos — e foi mesmo o que mais cresceu na Europa no ano passado — graças às camadas mais jovens, quem mais lê no país.

Para impulsionar estes números, estão a ser pensadas iniciativas como o cheque-livro, plano de consolidação dos hábitos de leitura pensada pelo ministério da Cultura em conjunto com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). O Governo quer para pôr os mais novos a ler, ao dar a cada jovem que tenha 18 anos feitos em 2023 a “experiência” de “escolher e comprar” pelo menos um livro. Há também múltiplos projetos a ser levados a cabo por leitores e criadores de conteúdo na internet, de forma a divulgar o que se publica em Portugal.

Entre os livros de ficção com maior sucesso em 2022, vários são especialmente populares entre adolescentes e jovens adultos. Muitas vezes, abordam temas que são cada vez mais próximos dos jovens, como as questões LGBTQI+.

Acho que [o mercado literário português] está a tornar-se cada vez mais inclusivo, embora a um ritmo muito moroso”, considera a jovem tradutora Elga Fontes, que tem sido responsável por traduções de vários géneros literários para múltiplas editoras — e ressalta que os livros que têm saído que incluem linguagem neutra ou outras atenções redobradas relacionadas com a inclusão têm sido, na sua maioria, trabalhados também por jovens, da tradução à divulgação — as editoras estão a apostar em jovens para as ajudar neste trabalho, até mesmo por cá.

Além de “Género Queer”, a tradutora (também criadora de conteúdos literários nas redes sociais) dá o exemplo de outros livros recentemente lançados em Portugal, como “Pageboy”, autobiografia de Elliot Page e “Lendários”, de Tracy Deonn; ou “Destransição, Baby”, de Torrey Peters, lançado esta semana, outra destas várias obras que falam sobre “identidades fora do espetro cis e binário” e que estão a surgir com mais frequência entre os lançamentos mensais das editoras. Existem outros exemplos marcantes no que toca à representatividade LGBTQI+, como o caso de “Heartstopper”, romance gay em banda desenhada cujo primeiro volume foi o 11.º livro mais vendido em Portugal em 2022.

A tradutora diz sentir uma rapidez maior nesta mudança de paradigma, porque “basta haver um a dar o primeiro passo para todos irem atrás. Não todas as editoras, mas as que têm interesse em chegar de facto ao público e aquelas que trabalham com um público mais jovem”. O cenário ainda não é o ideal, considera, mas “com o tempo, vai melhorando, estamos melhor que há cinco, dez anos”.

“Especificamente com o ‘Género Queer’, senti a vontade [da editora] de trazer o livro e de fazer o melhor trabalho com ele”, acrescenta Marta Maia da Costa. “Não estamos ainda no ponto, vai demorar muito tempo a chegar lá. Mas existe uma vontade de mudança e de fazer mais e melhor”.