Assinala-se hoje o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Há quem não perceba ainda porque é que este dia continua a ser necessário. E muita gente desvaloriza a forma totalmente estrutural como a violência machista, que depois se traduz em múltiplas formas de agressão, continua a afetar transversalmente milhões de mulheres, raparigas e meninas mundo fora. Sei que costumo assinalar esta data – assim como o Dia Internacional da Mulher – com estatísticas. Desta vez, decido fazê-lo também com uma pesquisa no Google. E eis apenas uma ínfima parte dos resultados de notícias que encontrei, publicadas no último mês.
Mulher violada por dois homens em Santa Maria da Feira; Dentista desaparecida após sair do trabalho é encontrada morta; Mulheres violadas na Etiópia sem acesso a cuidados médicos; MP acusa homem de Barcelos de violar duas prostitutas e tentar matar uma delas; Pobreza no Afeganistão leva famílias a vender meninas para casamentos forçados; PJ detém homem de 30 anos por violação de adolescente; Ex-funcionária abre processo contra a PlayStation por assédio e discriminação de género; Tenista chinesa desaparecida depois de acusar político de abuso sexual; Agressor filmou episódio de violência doméstica e publicou imagens no Facebook; Professor de matemática é indiciado por assédio e importunação sexual contra alunas; ‘A melhor pessoa para violarem é a vossa esposa’, diz pastor do Bronx; Nigéria: Marido de 24 anos mata esposa com tesoura; Marilyn Manson torturava mulheres numa cela de vidro que tinha em casa; Médico recusa fazer histerectomia em mulher lésbica e alega que a sua orientação 'pode mudar’.
Podia ficar por aqui, mas como eu sei que comentários do género “isto agora é moda as mulheres queixarem-se de tudo” ou “isso também não é bem assim” continuam a fazer parte do discurso diário quando se fala de violência contra as mulheres, aqui vão mais uns quantos títulos das últimas quatro semanas: Criança violada em grupo e atirada de penhasco no Brasil. Tio da menina é um dos cinco detidos; Menina de 12 anos vendida em Espanha por quatro mil euros para casar com homem; Caso da jovem assassinada a tiro pelo ex-companheiro em Muge está a ser julgado; Família de freira violada e assassinada lamenta demora da Justiça para prender homicida; Homem mata mulher e filha e convive com corpos por 4 meses; Militar responsável pela segurança de Macron terá sido violada após festa no Palácio do Eliseu; Violência obstétrica: ‘Parece que quando a mulher atravessa a porta da maternidade é desumanizada’; Adolescente diz que foi violada durante concerto de Harry Styles e ‘ninguém fez nada’; EUA: Mulher acusada de homicídio após sofrer aborto espontâneo; India: Violada pelo marido e pelo pai depois de forçada a casar-se aos 13 anos; Mulher violada em comboio enquanto passageiros ‘observavam e não faziam nada’; Pelo menos 64 casos de assédio sexual em coro feminino na Dinamarca; França: mulher drogada pelo marido e vendida para ser violada durante anos. Texas: Mulher tenta separar-se do marido e é assassinada após anos de abuso; Homem viola e mata filha de 25 anos, que se casou com alguém de outra casta; Pena suspensa para pai que abusou sexualmente de filha de quatro anos em Águeda; Menina de 11 anos violada por colegas menores em Santarém. Jogadora de voleibol decapitada pelos talibãs. Mulheres desportistas perseguidas pelo regime; Doente oncológica violada no Barreiro; Mulher trans é espancada com pontapés e pauladas: ‘Fingi-me de morta para sobreviver’.
E agora algumas das estatísticas que deviam revirar-nos o estômago
Reforço que os títulos supracitados são de notícias publicadas apenas nas últimas quatro semanas. Um retrato macabro das múltiplas formas de violência que todos os dias são vividas pela população feminina. Se os títulos não chegam para passar a mensagem, então aqui ficam também alguns dos números de entidades como Nações Unidas, OMS, Comissão Europeia ou Instituto Europeu para a Igualdade de Género, que nos deviam tirar o sono coletivamente: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo é vítima de agressões físicas, psicológicas e sexuais, pelo simples facto de ser mulher. Todos os anos cerca de 15 milhões de meninas e raparigas são obrigadas a casar, o que dá uma média de 28 por minuto. Um contexto atroz que fomenta o isolamento, a gravidez precoce, a desistência escolar e consequentes ciclos de dependência financeira e exposição a violência na intimidade. Cerca de 80% das vítimas de tráfico humano são mulheres e meninas, sendo que 3 em cada 4 são depois alvo de exploração sexual. Vendidas como mercadoria em pleno século XXI. Diariamente, 8 mil meninas estão em risco de sofrer mutilação genital. Mais de 5 mil mulheres e raparigas são mortas todos os anos nos chamados crimes de honra, regra geral cometidos pelos seus próprios pais, irmãos ou maridos. E feitas as contas globais às mulheres assassinadas (cerca de 87 mil por ano), mais de metade continuam a ser mortas por homens com quem têm ou já tiveram relações de intimidade.
Os principais carrascos das mulheres e meninas continuam a ser os homens, principalmente aqueles que supostamente as deviam amar, proteger e respeitar. E dizer isto não é fomentar uma generalização em jeito de “caça aos bruxos”, é apenas uma constatação estatística. O mesmo para o facto de a própria casa, que deveria ser o porto seguro de todas nós, continuar a ser o sítio que representa maior perigo quando se é mulher. Com o atual contexto de pandemia, revelava também recentemente a ONU que os pedidos de ajuda em linhas de apoio a vítimas de violência doméstica aumentaram cinco vezes. O cenário já era terrível, mas as restrições de movimento, o isolamento social e a insegurança económica fazem crescer significativamente a vulnerabilidade das mulheres à violência no seio familiar um pouco por todo o mundo.
Se depois de tudo isto ainda vos sobrarem dúvidas sobre quão dramática é a dimensão global da violência contra as mulheres, convido-vos a fazerem o esforço de tirarem a cabeça de debaixo da areia. É que só não vê quem não quer. E não querer ver é compactuar com o problema.
Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.