A vida de saltos altos

A violação num comboio que foi filmada e a desumanização das mulheres

Um homem viola uma mulher num comboio nos EUA e a única coisa que algumas das dez pessoas que seguem na mesma carruagem fazem é filmar com o telemóvel. Ninguém tentou parar o agressor, ligar para a polícia ou puxar o travão de emergência. Apenas filmaram o crime e a prolongada agonia da vítima. O que nos diz tudo isto sobre quanto vale a vida de uma mulher em 2021? E como se explica esta inação de quem assiste sem nada fazer? Respostas complexas, mas que têm um eixo comum: a normalização da violência contra as mulheres

Uma mulher viaja num comboio urbano de Filadélfia em plena luz do dia. Um homem senta-se ao seu lado, assedia-a. Na mesma carruagem seguem pelo menos mais dez passageiros e ninguém intervém, revela posteriormente a polícia. O grau de violência escala, o homem começa a tentar tocar-lhe. Ninguém faz nada. O homem rasga-lhe a roupa e viola-a. Sim, isto aconteceu esta semana: um homem violou sexualmente uma mulher num comboio público e a única coisa que algumas das pessoas à volta fizeram foi filmar o ato com o telemóvel. Ninguém tentou parar o agressor. Ninguém ligou para a polícia. Ninguém puxou o travão de emergência. Apenas filmaram com o telemóvel os longos oito minutos de agonia daquela mulher, agonia essa que provavelmente se prolongará durante longos anos da sua existência. O que nos diz tudo isto sobre quanto vale a vida de uma mulher em pleno 2021? E o que diz esta inação de quem assiste a tal crime sem nada fazer?

Antes de me debruçar sobre este crime agoniante que aconteceu nos Estados Unidos, permitam-me contar-vos um episódio a que assisti em Lisboa e que até hoje me atormenta. Aliás, acho que foi mesmo isto que me levou a despertar para a gravidade das múltiplas formas de violência vividas pelas mulheres nos tempos de hoje. Era eu adolescente e ia a chegar a casa depois de almoço. Ruas cheias de gente, lojas abertas, movimento normal de uma tarde num bairro movimentado da capital. Oiço um gemido que já não tinha força para ser grito vindo do outro lado da rua. Vejo uma mulher de joelhos no chão e um homem a puxá-la pelo braço. Ela levanta-se e segue atrás dele. Ele vira-se e dá-lhe um murro na cara com tal força que a mulher volta a cair de joelhos. Percebo então que não era o primeiro murro. Ele grita-lhe enfurecido para ela se levantar, ela tenta esconder a cara. Ele puxa-a novamente e ela arrasta-se atrás dele. Eu era miúda, mesmo miúda. Desato a gritar a pedir ajuda. O meu namoradinho na altura agarra-me e pede-me para não me meter porque o homem ainda me podia bater a mim. Percebo que era uma possibilidade e dirijo-me aos adultos mais próximos que assistiam a tudo às portas de uma loja e de um café. Ninguém fazia nada, apenas assistiam ao calvário daquela mulher. “Menina, isso é lá entre eles”, disseram-me uma e outra vez. No passeio multiplicavam-se as pingas de sangue caídas da cara daquela mulher que era espancada pelo marido em plena luz do dia – sabe-se lá o que lhe terá acontecido depois dentro de quatro paredes -, numa rua movimentada de Lisboa sem que ninguém fizesse fosse o que fosse para o parar. Só não filmaram porque estávamos o início dos anos 2000 e os telemóveis eram coisas raras.

Desumanizar a realidade através do ecrã do telemóvel

De 2000 para 2021, há algo que se mantém inalterado: a normalização da violência contra as mulheres e a apatia com que lidamos com ela. Assistir a uma agressão e filmar o ato é só mais uma adaptação aos tempos de hoje de algo muito profundo e que está enraizado em nós. E que vai ao encontro precisamente dessa perceção de que uma mulher ser agredida é apenas algo que sempre aconteceu e que, por isso, tendemos a desvalorizar. O ecrã veio apenas reforçar a nossa capacidade de desumanizar ainda mais a realidade, desresponsabilizando-nos enquanto potenciais agentes ativos de intervenção. Deixa de ser uma pessoa na vida real, no presente, mesmo ali ao lado, para ser uma história que se vê num telemóvel. Passa a ser uma narrativa de certa forma fictícia. Para algumas pessoas, quase uma fonte de entretenimento. E isto cria uma distância que reduz em muito a empatia, como pode funcionar também como estratégia de defesa para quem assiste, em horror e temor por si mesmo, e paralisa, não sabendo como reagir (que também é bastante comum). Filmar pode ser ainda usado como uma tentativa dos tempos modernos de fazer justiça à posteriori, ficando com prova do crime. Já vários crimes resultaram depois em alguma ação da justiça graças a provas destas, é verdade. Mas caramba, neste crime de Filadélfia eram pelo menos dez pessoas dentro de uma carruagem. É impossível não questionarmos porque não fizeram mais do que ficar a ver e, em alguns casos, filmar.

Eram pelo menos dez pessoas que podiam ter feito alguma coisa em concreto, que se podiam ter unido para salvar aquela que estava a ser agredida. Mesmo que tivessem medo de intervir fisicamente – até porque não só ainda não se sabe se o agressor tinha uma arma, como também todos conhecemos histórias de quem se meteu e acabou a ser gravemente agredido ou até mesmo morto - podiam simplesmente ter agarrado nos telefones para ligar ao 911 e pedir ajuda urgente. Foram oito minutos de violação consumada e muitos outros anteriores de uma situação grave de assédio e violência. Como é que ninguém fez o que parece óbvio: alertar as autoridades? Ou puxar o travão de situação de emergência da carruagem? Como é que a falta de empatia se sobrepõe à vida de uma mulher? Talvez porque a vida das mulheres continua a ser algo que pouco vale e as múltiplas formas de violência que lhes são dirigidas continuam a ser normalizadas amiúde na nossa sociedade.

A violência contra as mulheres como cultura de entretenimento

Do cinema à publicidade, dos videoclipes aos conteúdos humorísticos partilhados nas redes sociais, das próprias leis de tantos países aos grupos de chats misóginos que se multiplicam como cogumelos, a normalização da violência contra as mulheres está por todo o lado. Faz parte, inclusive, de uma cultura de entretenimento, que embora seja aparentemente inofensiva por ser fictícia, tem um impacto verdadeiramente devastador na narrativa que se vai construindo sobre o que é aceitável ou não, independentemente do que dita a lei. Não é ao acaso que os números de situações de assédio, violações e até mesmo assassinatos de mulheres são tão altos, inclusive em contextos de países ditos civilizados (olhemos para o que se tem passado no Reino Unido nos últimos meses, por exemplo). Não é ao acaso que as mulheres continuam a ter de arranjar estratégias de autoproteção no seu dia-a-dia. Que criam rituais de evitamento para andarem no espaço público, um espaço que também lhes devia pertencer por direito, sem representar um perigo acrescido pelo facto de serem mulheres. Não é ao acaso que tanto homens se sintam no direito de cometer crimes como este, nem é tampouco ao acaso que se sintam até mesmo confortáveis para o fazerem em locais públicos, e na presença de outras pessoas.

Há uma apropriação ao corpo da mulher e um direito à sexualização de tudo o que é feminino que vem de longe, de séculos de história. A par de uma ideia de submissão feminina como regra, há uma superioridade masculina que continua muito presente na nossa construção social sobre os papéis e direitos de uns e outras. Não é ao acaso que a maioria dos agressores das mulheres são homens. E não é também ao acaso que se questiona tanto as vítimas, como se fossem elas as culpadas pelas agressões que sofrem e os agressores apenas vítimas dos seus impulsos inevitáveis - provocados por elas, claro. Portanto também não é ao acaso que tanta gente veja episódios de agressões – sejam elas físicas, verbais, psicológicas, etc. – e simplesmente fique na dúvida se o que está a acontecer é errado ou não. Incluindo as próprias vítimas, que muitas vezes demoram uma vida até conseguirem compreender que só houve um culpado pelo que aconteceu: quem agrediu.

Nada disto é ao acaso, mas não significa que esteja certo. Já chega de apatia e falta de empatia. Vai sendo altura de olharmos para isto como um problema real e pandémico que condiciona, pior, continua a tirar a vida a boa parte de metade de população do planeta. Não normalizemos a violência contra as mulheres, nem desvalorizemos mais a misoginia estrutural que continua a criar tantos homens para serem carrascos. E não tratemos mais os carrascos como vítimas, guardemos essa posição para quem o é de verdade.

Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.