A vida de saltos altos

As mulheres “de certa idade” estão fora do prazo?

Diz-se que perguntar a idade às senhoras é de mau tom. Mas porquê, é algo que devemos esconder? Devemos ter vergonha da nossa idade? Vivemos num mundo moderno onde as mulheres envelhecem mais cedo, e não é biologicamente, é socialmente. Nos homens, o envelhecimento é encarado na ótica da maturidade, do charme ou até mesmo do poder. Nas mulheres, esse processo natural é uma falha que deve ser corrigida. 'Envelhecer bem’ é manter a aparência juvenil como imperativo, seja a que custo for. Um preconceito perverso, estruturalmente machista, que enche os bolsos a dezenas de indústrias. E que nos leva ao comentário de Carlos Moedas sobre o problema da “certa idade” de Monica Bellucci, que aos 56 anos já está velha para ser considerada interessante

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que encontrei um cabelo branco no topo da minha cabeça, tinha chegado aos 30 fazia pouco tempo. Num impulso arranquei-o, como se me estivesse a ver livre de um enorme mal que se abatera sobre mim. Só depois de o fazer é que parei para pensar naquele gesto automático: porque raio um cabelo branco tinha gerado em mim tal repulsa primária? A realidade é que todos os dias as mulheres são bombardeadas pela ideia do envelhecimento como algo que deve ser combatido com todas as nossas forças, em vez de ser encarado apenas como um processo biológico natural e, portanto, desejável. A maturidade, as rugas que contam a nossa história, os cabelos brancos, as marcas do tempo nos nossos corpos não são valorizados, pelo contrário. Vivemos numa sociedade que diz continuamente às mulheres que, no seu caso, a juventude deve ser eterna. Os padrões de beleza no feminino estão estritamente dependentes disso, portanto devemos almejar a aparência juvenil como meta constante, como se isso nos definisse. Sei que nisto dos inúmeros mitos ligados à beleza há muito por onde pegar, mas se sabemos que envelhecer é um processo simplesmente inevitável para todas nós, não será este o estereótipo mais perverso de todos?

Dei por mim a pensar neste meu episódio quando ouvi o recente comentário do candidato à Câmara de Lisboa em entrevista a Ricardo Araújo Pereira. Numa tentativa de aligeirar a conversa com recurso ao humor, saiu-lhe uma expressão que revela boa parte da pressão que existe sobre o sexo feminino no que toca ao envelhecimento: enquanto potencial embaixadora de Lisboa ao nível da gente famosa, Bellucci não é atraente porque “já tem uma certa idade”. Michael Fassbender também foi mencionado na conversa, mas o comentário final sobre o fator “certa idade” foi dirigido à atriz, que tem 56 anos. Moedas riu-se, RAP também, e o comentário passou pelos pingos da chuva. Atenção, acredito que o comentário não foi dito com má intenção, mas esse é um dos problemas da normalização deste tipo de preconceitos: estão tão enraizados que corremos o risco de considerar que fazem sentido e que não são discriminatórios. Mas são. Enquanto mulher que inevitavelmente se debate internamente com as questões dos estereótipos de beleza que me entram pelos olhos desde miúda, quer eu queira quer não, tal gracinha é só mais um reafirmar de que as mulheres têm um prazo de validade. Isto de se chegar a “uma certa idade” é um problema, mesmo quando se é uma Monica Bellucci, ícone maior da beleza (isto de ser ícone também traz um rol de estereótipos associados, mas essa é toda uma outra dissertação).

Socialmente, as mulheres envelhecem muito mais cedo do que os homens. A pressão para manter uma aparência jovem é gigante, e quem não o consegue, facilmente tem o rótulo de desmazelada. Esta ideia faz correr rios de dinheiro há décadas. Não podemos continuar a menosprezar a existência de toda uma indústria que lucra sobejamente graças à insegurança provocada nas mulheres em relação à sua aparência, sendo o deturpação do envelhecimento um dos principais iscos de negócio. São tantos os cremes, séruns e demais produtos cosméticos que nos tentam vender desde cedo para combatermos as marcas naturais da idade do nosso corpo, principalmente no rosto, que se torna absurdo se pensarmos nisso. O mesmo para as cirurgias estéticas que supostamente “corrigem os sinais de envelhecimento”, porque, lá está, envelhecer é algo que deve ser corrigido em vez de ser aceite com normalidade. Ou as tintas e tratamentos capilares para o cabelo, porque raízes brancas é que não pode ser quando se é mulher. Quem ganha com isto? As mulheres não são de certeza, porque isto gera, acima de tudo, ansiedade e um eterno sentimento de falha. Portanto, questionarmos tal mensagem preconceituosa e os seus resultados nas nossas vidas, em vez de alimentarmos os lucros de tais indústrias, podia ser um bom ponto de partida. Por exemplo, o que aconteceria a todas as empresas e marcas que vivem desta ideia perversa do “anti-aging” se um dia as mulheres acordassem e simplesmente aceitassem que envelhecer faz parte da vida e que isso não as define no seu todo? Que tanto a sua beleza como a sua sensualidade não dependem da idade?

A aversão ao envelhecimento faz parte do ADN das sociedades modernas

Claro que da teoria à prática isto não é assim tão simples porque esta aversão ao envelhecimento faz quase parte do ADN das sociedades modernas, tanto para homens como para mulheres. Mas no feminino isto toma proporções bastante maiores, e que não se resumem à estética. Nas dinâmicas do dia a dia, deparamo-nos frequentemente com dois pesos e duas medidas quando se trata do tema idade em homens e mulheres. Por exemplo, um homem que chega aos 50 sem ter uma relação amorosa fixa é encarado como um solteirão (e solteirão é um adjetivo divertido, em jeito de apogeu da liberdade), já uma mulher é rotulada de “encalhada”, como se simplesmente não tivesse conseguido atingir um objetivo. Porque nós aparentemente temos o tal prazo de validade e depois “de certa idade” já não somos alvo direto do desejo masculino (algo que durante séculos era essencial à nossa sobrevivência, literalmente). O mesmo para a questão dos filhos, um homem que chega à meia-idade sem ter prole é um bom-vivant, já as mulheres “ficaram para tias”, frase invariavelmente dita em tom jocoso ou grosseiro (o facto de potencialmente não querermos ser mães por livre arbítrio também não interessa para nada). Um homem com cabelo grisalho é um charmoso, uma mulher é uma velha desleixada. E por aí fora.

Do cinema à publicidade, da televisão à moda, o culto da juventude eterna existe como uma máxima do universo feminino, e nem mesmo as mulheres que são os ditos ícones de beleza - como Bellucci - estão imunes a esta sentença. Vale a pena ver o sketch “Last Fuckable Day” de Amy Schummer, que juntou as atrizes Tina Fey, Julia Louis-Dreyfus e Patricia Arquette numa sátira sobre a pressão e preconceitos que as atrizes de Hollywood sofrem em relação ao envelhecimento. Por exemplo, a partir de determinada idade deixam de ser contratadas para papéis de amantes ou personagens sedutoras, passando a assumir apenas as personagens de mães, tias ou avós, as cuidadoras. Ao contrário dos homens, que são os “garanhões” e os “charmosos” até quase ao fim das suas carreiras (muitas vezes a contracenar com mulheres bastantes mais jovens), elas a partir dos 40/50 deixam de ser consideradas para papéis que envolvam uma narrativa de sensualidade. Porquê? As mulheres depois dos 50 não têm vida sexual ativa? Deixam de ser sensuais? De ser alvo de desejo? Deixam elas próprias de sentir desejo? Ou não lhes “fica bem” um papel com cariz sensual ou sexual a partir de “certa idade”? Aos estereótipos de beleza juntam-se também estes, numa bola de neve de "idadismo" contra as mulheres, que vamos aceitando e perpetuando sem questionar muito.

Ainda que possa não ser totalmente óbvio, é preciso entender que estas mensagens preconceituosas são apenas mais um tentáculo do machismo estrutural sob o qual vivemos. Que dita os papéis masculinos e femininos na sociedade, sendo que o nosso ainda passa muito por sermos o objeto estereotipado de desejo dos homens. Ou daquilo que também continuamos a perpetuar que é o que os homens querem, e que na realidade eles tantas vezes assumem como verdade para cumprirem igualmente as expectativas associadas ao seu suposto papel. Quanto às mulheres, querem-se perfeitas na aparência e nos comportamentos, mesmo que já toda a gente saiba que isso da perfeição não existe. A questão é que enquanto nós, mulheres, continuarmos a ocupar o nosso tempo mental com estas expectativas irreais, que pouco acrescentam ao nosso bem-estar, mas que nos são incutidas como imperativos sociais da vida no feminino, não nos sobrará tempo para participar ativamente noutras dimensões da sociedade. Nem para reclamar o espaço, a voz ativa, a credibilidade, a presença, o mérito e o poder que já deviam também ser nossos há muito tempo. E em boa parte, eu diria que o objetivo lá no fundo também é esse. Manterem-nos distraídas do que é realmente essencial, começando pelo nosso potencial individual ainda tão camuflado pelo peso dos estereótipos.

Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.