A vida de saltos altos

#MeToo. Queriam nomes? E agora, de que lado estão?

Dizem as estatísticas que as denúncias falsas são residuais, mas isso pouco interessa. Como se tem visto, com ou sem nomes, Portugal prefere continuar a defender os agressores, tendo como ponto de partida o enxovalho e a descrença das vítimas, como se na realidade fossem elas as culpadas. Cada vez que, à cabeça, pomos em causa a palavra de alguém que teve a coragem de quebrar o ciclo de medo, vergonha e culpa que envolve a violência sexual, fomentamos o silêncio das demais. O mesmo silêncio que depois achamos ser uma prova da sua má índole. Os abusadores alimentam-se dessa equação perversa que os protege, assim como da inércia da justiça. E seguem para a próxima vítima com a certeza de que sairão impunes. Até quando vamos compactuar com isto?

O movimento #MeToo chegou por fim a Portugal. Mas não deixa de ser sintomática a forma como tudo se tem desenrolado por cá nas últimas semanas, desde que Sofia Arruda assumiu publicamente ter sido vítima de assédio sexual e, por isso, ficado afastada da TVI vários anos. Depois de a atriz ter relatado os prejuízos à sua vida, várias figuras do meio televisivo deram o passo de relatar nas redes sociais as situações de assédio pelas quais passaram também. Mais ou menos como aconteceu com o meio de Hollywood após o caso Weinstein, juntas somos mais fortes. #MeToo significa que não estão, não estamos, sozinhas. A elas juntaram-se dezenas de mulheres anónimas, incluindo as que fizeram capa da revista Sábado, à qual contaram as suas histórias. Quem as leu só pode ter sentido uma ínfima parte da angústia que todas elas viveram nos mais diferentes contextos. Mas em vez de empatia e solidariedade, boa parte destas mulheres foram enxovalhadas e, sem surpresas, questionadas. Como se fosse uma obrigação, exigiram-se então nomes, porque relatos sem culpados concretos não interessam para nada. Pelos vistos, há um manual para se poder ser uma vítima de violência sexual como “deve de ser”, e quem não diz nomes não tem direito a esse estatuto, é menos vítima. Os nomes chegaram como foi pedido, mas com eles chegou também uma nova onda de enxovalho e descrença, repetindo-se os clichés nestas matérias: “elas só querem é 5 minutos de fama”, “se fosse verdade ela tinha feito logo queixa”, “isto agora é uma moda”, e a eterna pergunta “porque é que só falou agora?”. Definitivamente, Portugal não está preparado para encarar a realidade e prefere continuar a defender os agressores pelo bem do status quo.

Em contraponto às perguntas supracitadas, eu diria que as questões que realmente deviam estar a ser levantadas são outras: porque é que isto continua a acontecer diariamente na nossa sociedade? Porque é que as mulheres são continuamente assediadas sexualmente com comentários inapropriados, investidas desrespeitosas, toques indesejados e ameaças veladas que têm como objetivo dinâmicas sexuais por coação e não por desejo e livre vontade? Porque é que os homens – assumamos isto de uma vez - continuam a sentir que podem exercer esta forma de poder sobre as mulheres? Porque é que continuamos a preferir descredibilizar as vítimas em vez de assumirmos que temos um problema estrutural de machismo que anda há séculos a fazer-nos encarar o assédio como algo aceitável? Porque é que as autoridades ainda não estão preparadas para receber estas vítimas? Porque é que os prazos para apresentar queixa são tão curtos se sabemos que estas são situações traumáticas? Porque é que fazemos exigências às vítimas, em vez de respeitarmos os seus tempos? Porque continuamos a considerar que um abuso é menos grave se foi feito no passado? Porque é que mesmo quando temos milhares de mulheres mundo fora a partilharem as suas experiências, continuamos a preferir questionar se ‘isto será mesmo assim como elas dizem’? Quem estamos a defender ao alimentar esta dúvida e porque o fazemos?

As mulheres é que não se devem “pôr a jeito”

Não percebem porque é que uma vítima pode demorar anos até falar? Bom, são tantas as causas do silêncio que me custa e entender como é que num tema onde tanta gente tem tantas certezas isto ainda pode ser pergunta. Entre muitas outras coisas, porque vivemos num mundo que ainda nos ensina desde miúdas que não nos devemos “pôr a jeito” e que isto são apenas as regras do jogo (o que também leva a que tantas mulheres ora nem sequer tenham noção do abuso, ora se questionem mais a si mesmas do que a quem abusa). Porque a descrença só serve para gerar sentimentos de vergonha, culpa e impotência. Porque os abusadores estão, regra geral, em situações de poder. E tal como aquele produtor que assediou e privou Sofia Arruda de ser contratada durante 5 anos, em contexto laboral a maioria dos abusadores podem arruinar uma carreira num estalar de dedos. Porque para os abusadores, parte do gozo é ter este poder nas mãos, e o seu ego é mais importante do que a vida das mulheres que os rejeitam. Porque, enfim, há contas para pagar ao fim do mês e são poucas as mulheres que se podem dar ao luxo de ficar sem rede financeira. Porque há medo, muito medo de todas as consequências que uma denúncia acarreta quando a justiça continua a ser machista e raramente protege as vítimas.

Não deixa de ser irónico que por mais que os números mostrem que apenas 3% a 4% das denúncias de violação sejam falsas (e puníveis por lei), se continue a ter como ponto de partida duvidar da palavra das restantes 97%. Sem esquecer que ao fazê-lo, na realidade estamos a escolher um lado, o dos agressores. Assim como é irónico que se alimente esta ideia de isto do assédio sexual agora é moda, em vez de o encararmos como o que ele é, um crime (assim também prevê a lei). Ou que se considere que as mulheres denunciam por quererem cinco minutos de fama, como se ter a coragem de denunciar alguém por assédio, com todos os prejuízos que isso traz às nossas vidas quando a justiça mal nos protege e a sociedade nos penaliza moralmente, fosse uma porta aberta para o estrelato. Não é. E acreditem que para boa parte das atrizes, apresentadoras de televisão, jornalistas e demais mulheres que arriscam denunciar publicamente os abusos que viveram em contexto laboral, isso muito facilmente as deixará ‘queimadas’ a nível profissional em meios que continuam a ser liderados, lá está, por homens. Não vejo em que medida isto pode ser uma vantagem.

Na teoria, já se percebeu que a maioria das pessoas considera o assédio sexual inaceitável. Contudo, mexer no status quo que alimenta a forma impune com que este tipo de agressão acontece parece ser uma ideia ainda menos aceitável. Assumirmos que a maioria dos agressores são homens é demasiado incómodo. E por mais que já se tenha repetido até à exaustão que isso não significa que todos os homens são potenciais agressores, a postura torna-se automaticamente defensiva e enche-se a boca para dizer que isto é uma generalização perigosa. Eu diria que perigoso é ser-se menina e mulher e ter de lidar com isto todos os dias como se o ónus da manutenção da nossa segurança, integridade e dignidade fosse uma responsabilidade nossa. Basicamente, é isso que fomentam cada vez que questionam os nossos comportamentos, escolhas e experiências para justificar o injustificável.

Ao final do dia, a sociedade protege os agressores e não as vítimas

Esta desvalorização tem o condão de gerar medo, vergonha e culpa. Repito isto porque é mesmo importante: mulheres e meninas que sentem vergonha do que lhes aconteceu, que estão formatadas para se culpabilizarem pelo sucedido e que não só sentem medo de não serem levadas a sério, como pior, sabem de antemão que há uma forte probabilidade de serem ainda mais maltratadas pelo caminho, facilmente optarão pelo silêncio. No fundo, é isto que a sociedade quer, porque ouvir e aceitar os relatos das vítimas, sem ter como ponto de partida duvidar delas, dá demasiado trabalho. Porque implica questionar privilégios e crenças históricas nas quais assentam a nossa visão dos factos. Implica remar contra a maré. Num mundo cheio de profundas formas de desigualdade, entre elas a de género, continuam a valer menos a palavra e a vida de quem é oprimido do que a de quem está em posição superior. E os agressores alimentam-se disto. Continuam a ser agressores em boa parte por causa disto. Porque manipular é fácil quando a realidade é esta. Porque sabem que, no final do dia, a sociedade, e até mesmo a justiça, vão estar lá para os proteger, mesmo que a lei diga o contrário, arranjando argumentos que desculpem os seus comportamentos. A perversão da aceitação e normalização do assédio passa muito por aqui.

O enfoque do movimento #MeToo - que tardou em Portugal mas que importa que não esmoreça - é precisamente abrir espaço para a narrativa das vítimas. Não é uma luta das mulheres contra os homens, é uma luta de pessoas no geral contra os abusadores. Há obviamente espaço para os homens que também são e foram alvo de abusos, mas é importante que isso não desvalorize o facto de as mulheres serem as maiores vítimas destas formas de agressão. O #MeToo é sobre toda a gente, mas principalmente sobre elas. Tal como as várias formas de violência sexual. Por mais que isso até fosse desejável, o #MeToo também não é, por agora, sobre levar pessoas a tribunal (havemos de lá chegar). É sobre mudarmos o paradigma na forma como olhamos para estes casos, é sobre passarmos a estar, à cabeça, do lado das vítimas em vez de ficarmos do lado dos agressores. É sobre retirarmos as tais camadas de vergonha e culpa de cima de quem é assediado e abusado, dando-lhes a confiança e empatia necessárias para que um dia possam ter como primeira opção apresentar queixa. Queixas que sejam levadas a sério e que não as façam passar por novas formas de vitimação. É aceitarmos a dimensão nefasta e transversal do assédio e abuso sexual e tornarmo-nos coletivamente agentes ativos de mudança. Uma mudança que tanto pode ser olhar para os nossos próprios comportamentos, como não nos calarmos quando vimos uma situação abusiva a acontecer. Silenciar e não agir é compactuar. É sobre retirarmos aos abusadores a certeza de que sairão impunes, deixando claro que os repudiamos. Isso sim será um caminho para mudança, com ou sem nomes envolvidos. E sem se cair no erro de achar que temos o direito de fazer exigências às vítimas, não respeitando os seus tempos e livre arbítrio.

Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.