A vida de saltos altos

Andar na rua sem medo ainda é um privilégio masculino

Eram 21h quando Sarah Everard ia caminho de casa a pé e desapareceu. Foi assassinada e o seu corpo deixado numa mata. Aconteceu em Londres mas podia ter sido aqui. Porque a rua, que por direito também devia ser um lugar seguro para as mulheres, ainda não é. Pergunto eu: quantos homens também já temeram pela própria vida ao fazer algo tão simples quanto regressar a casa à noite? Ou tiveram medo de apanhar um táxi sozinhos? Quantos já foram assediados na rua por grupos de homens? Quantos têm de pensar por onde andam, a que horas andam ou que roupa levam vestida com receio de serem violados? É que para a maioria das mulheres isto é uma realidade diária

No dia 3 de março, Sarah Everdad saiu de casa de um amigo às 21h para regressar a pé à sua e desapareceu. As últimas imagens que existem, retiradas de uma câmara de vigilância, mostram-na a caminhar numa rua movimentada do sul de Londres, enquanto falava ao telefone com o namorado, com quem combinou encontrar-se no dia seguinte. Só que nunca apareceu. No dia seguinte também não estava em casa, o seu telemóvel dava sinal de desligado, Sarah estava desaparecida. O namorado reportou o sucedido às autoridades e começou assim uma operação policial gigante que culminou com a descoberta dos restos mortais da mulher de 33 anos sete dias depois numa mata. Um agente da polícia metropolitana foi entretanto detido por suspeita de homicídio.

Tudo é macabro nesta história. E enquanto a seguia, dia após dia, dei por mim muitas vezes a pensar: porra, podia ter sido aqui. Podia ter sido eu. O mesmo parecem ter pensado milhares de mulheres no Reino Unido, já que as partilhas de relatos pessoais nas redes sociais tem sido gigantes nos últimos dias. A onda de indignação é geral, várias vigílias já foram feitas e grupos de discussão online criados, sempre com uma mensagem como pano de fundo: estamos em 2021 e andar sem medo na rua ainda não é uma realidade para as mulheres, mesmo em sociedades modernas com aquelas em que vivemos em plena Europa. Dados da UN Women UK vieram entretanto demonstrar estatisticamente quão grave é o que de passa nos tempos de hoje: 70% das mulheres do Reino Unido que participaram num estudo alargado sobre este tema relataram já ter sido alvo de assédio sexual em espaços públicos. No grupo com idades entre os 18 e os 24 anos, a percentagem subia para uns assustadores 97%. Apenas 4% das inquiridas alguma vez relataram o sucedido às autoridades e quase metade disseram que não o fizeram porque acharam que não valia a pena, que não seriam levadas a sério. Mais uma vez, são dados do Reino Unido, mas podiam ser daqui. Aliás, mais de metade da população feminina a residir na União Europeia afirma ter vivido situações de assédio sexual a partir dos 15 anos, feitas as contas, são cerca de 83 milhões de mulheres.

Quer se queira, quer não, ter medo de andar na rua faz parte da vida no feminino. Algo que perante a lei não faz sentido, mas que ainda vai sendo socialmente aceite como as regras do jogo. Os homens têm o direito de assediar (e digo os homens porque invariavelmente são eles que nos assediam), já as mulheres têm de aprender a lidar com isso desde miúdas. E em vez de deixarmos claro que isto é inaceitável, continuamos a passar esta mensagem perversa: é a mulher que tem de ter cuidado com o que faz, o que veste e por onde anda, que deve desenvolver mecanismos de proteção à sua integridade física, psicológica e moral quando anda na rua. Um espaço ao qual todos devíamos ter direito de igual forma, com segurança e dignidade. Mas não temos. E isso representa uma gravíssima restrição à nossa liberdade individual.

Acredito que com boas intenções - porque o problema é urgente, generalizado e carece de resposta rápida concreta - vão surgindo soluções como aplicações de telemóvel que dão sinal de alerta em situação de perigo, cursos de autodefesa para mulheres ou até mesmo carruagens só para mulheres e demais meios de transporte “femininos”. Mas parece-me que tudo isto apenas vem reforçar que, lá está, a responsabilidade recai sobre as escolhas das mulheres, quando a mensagem que deveríamos concertadamente fazer passar é outra: não são as mulheres que têm de se prevenir quando saem à rua. São, sim, os agressores que têm de ter noção de que os seus atos não serão tolerados e que sofrerão consequências graves caso não entendam isto.

Os homens não são todos potenciais agressores. Mas é deles que temos medo

Não me vou debruçar muito, para já, no facto de o principal suspeito de homicídio ser um polícia, e de o impacto que isto tem no sentimento de desconfiança das mulheres em relação a quem as devia proteger. Mas vale a pena refletir um pouco sobre a forma como embora o caso tenha gerado uma onda de indignação feminina no Reino Unido, com milhares de mulheres a partilharem histórias, seja a hashtag NotAllMen que, em jeito viral, se foi sobrepondo na discussão online. Eu percebo que é preciso ter noção de que os homens não são todos potenciais agressores, e que essa generalização possa soar ofensiva. Mas acreditem, nós mulheres temos essa noção (até porque já não haveria mulheres no mundo se assim fosse, estávamos todas mortas). A questão é que, invariavelmente, quem agride, assedia e viola as mulheres são homens. E nenhum agressor tem agressor escrito na testa, portanto são os homens no geral que tememos. É uma equação difícil de desfazer enquanto o paradigma não mudar.

Em vez de silenciarem a voz das mulheres (que é em boa parte o que a tal hashtag faz), num momento tão grave como este, e que mexe com os nossos medos diários, talvez fosse mais importante ouvirem-nos. É o que os aliados fazem: ouvem, dão a mão e ajudam a ultrapassar o problema tornando-se agentes ativos na alteração de comportamentos. Intervirem quando veem uma situação de assédio ou até mesmo chamarem amigos à atenção quando são feitos comentários inapropriados sobre mulheres dentro das dinâmicas masculinas de grupo são duas boas formas de o fazerem, por exemplo. Acreditem que pode fazer muita diferença na desconstrução da normalização do assédio e demais agressões que nos são diariamente dirigidas.

Agora, mais uma vez, retirarem o lugar da fala às mulheres porque se sentem incomodados com a generalização - generalização que é inevitável, pelo menos num plano inconsciente, pelo que já mencionei - é de uma enorme falta de respeito e empatia. Andar seguro e sem medo na rua ainda é um privilégio masculino, aceitem isto. E se não entendem porquê, talvez estas perguntas possam ajudar: quantas vezes sentiram medo ao regressarem sozinhos a casa à noite? E não estou a falar do medo de serem roubados - isso é outro campeonato, no qual também andamos, já agora. Estou a falar do medo de serem violados, de serem raptados, de serem mortos. Quantas vezes tiveram medo quando entraram sozinhos num táxi? Ou se mantiveram ao telefone com um amigo para garantir que alguém saberia onde estavam? Ou fingiram um telefonema destes? Quantas vezes se cobriram com um casaco comprido para que não se percebessem as formas do vosso corpo? Quantas vezes evitaram determinados caminhos com medo de serem interpelados por estranhos? Quantas vezes foram apalpados por estranhos em transportes públicos? Quantas vezes alguém já vos perseguiu claramente apenas por diversão? Quantas vezes tiveram de acelerar o passo com o coração quase sair pela boca porque entraram em pânico com as palavras obscenas que alguém vos disse? Ou porque um grupo de homens vos tentou barrar o caminho? Quantas vezes deixaram de ir fazer 'jogging' para a rua porque podia ser perigoso? Ou quantas vezes fizeram o caminho até à porta de casa com as chaves entre os dedos para o caso de alguém vos agarrar (bem sabemos que não vale de nada, mas dá-nos confiança)? Eu já fiz tudo isto várias vezes e vivo em Portugal, não vivo no Afeganistão. Lamento, mas não é normal. Nem aceitável. Estamos em 2021 e andar na rua sem medo ainda é um privilégio só para alguns.

Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.