A vida de saltos altos

Dia da Mulher. Não queremos flores, queremos dignidade

Já vai sendo altura de se perceber que a data de hoje não é sobre oferecer presentes às mulheres, é sobre reconhecer as inúmeras formas de discriminação e violência a que elas, nós, estamos sujeitas. Não queremos flores, queremos respeito. Queremos direitos assegurados, liberdade individual, igualdade salarial, equidade de oportunidades, segurança e justiça. Queremos a dignidade humana plena que nos continua a ser negada das mais variadas formas por termos uma vagina entre as pernas

Desde conferências sobre o futuro das mulheres em que os participantes são apenas homens a catálogos de supermercado com promoções de flores para o Dia das Mulheres, continua a ser claro que muita gente ainda não percebeu - ou não quer perceber - o que realmente está em causa neste dia. Não me vou alongar nos acontecimentos históricos, muitos deles trágicos, que nos trazem à data que hoje se assinala, mas acho importante reforçar esta ideia base: o Dia Internacional da Mulher é um momento simbólico de luta por todas as meninas e mulheres que têm diariamente as suas vidas espartilhadas por preconceitos e estereótipos de género. Um dia que alavanca todos os restantes 364 dias de resistência e combate ao machismo sistémico. Em que se dá espaço e voz às mulheres, às suas dores, às suas exigências, às suas dificuldades, aos seus desejos, às suas queixas, ao seu mérito, às suas vidas. E damos este espaço e lugar de fala às mulheres porque são elas que mais continuam a ser silenciadas, humilhadas, agredidas e invisibilizadas numa base diária, um pouco por todo o mundo.

Mesmo que na nossa bolha pessoal a realidade até possa ser boa - e ser boa não significa que seja totalmente justa, que isto da desigualdade de género faz parte da vida de todas nós, embora em escalas diferentes - não podemos esquecer os milhões de mulheres e meninas cujas vidas são gravemente prejudicadas, e inclusive colocadas em risco, à conta da discriminação histórica que recai sobre o sexo feminino. Uma discriminação estrutural, totalmente enraizada e que fomenta de maneira perversa as mais diversas formas de desrespeito e violência com que metade da população do planeta tem de lidar desde cedo. Claro que todos os anos vamos ouvindo o cliché de que este dia não faz sentido. Ou, melhor, que se há um dia da mulher então porque não criar um dia do homem. Talvez estes números que partilho nos próximos parágrafos possam ajudar a perceber porque é que ainda é preciso existir uma data como a de hoje, e porque é que o foco são as mulheres. Sinceramente, quem me dera que assim já não fosse.

Mulheres vendidas como mercadoria em pleno século XXI

Repito aqui dados estatísticos de entidades como as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde, a Comissão Europeia, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género, entre outras, que nos podem ajudar a perceber quão transversal é a discriminação exercida sobre a população feminina: por exemplo, sabiam que 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo é vítima de agressões físicas, psicológicas e sexuais, pelo simples facto de ser mulher? E têm noção de quantas mulheres da União Europeia viveram situações de assédio sexual a partir dos 15 anos? À volta de 83 milhões, ou seja, qualquer coisa como mais de 50% da população feminina a residir nos 28 Estados-membros (dados referentes ao período em que o Reino Unido ainda integrava a UE). E que mesmo em plena Europa, apenas 52% das mulheres casadas ou em união de facto tomam livremente as suas próprias decisões sobre relações sexuais, uso de contracetivos e cuidados de saúde? Têm também noção de que quase 80% das vítimas de tráfico humano são mulheres e meninas, sendo que 3 em cada 4 são depois alvo de exploração sexual? Vendidas como mercadoria em pleno século XXI. Ou que todos os anos 15 milhões de meninas e adolescentes são obrigadas a casar, o que dá uma média de 28 meninas por minuto? Um contexto atroz que fomenta o isolamento, a gravidez precoce, a desistência escolar e consequentes ciclos de dependência financeira e exposição a violência na intimidade.

Sabiam também que 8 mil meninas estão em risco de sofrer mutilação genital diariamente? Somemos-lhe as mais de 5 mil mulheres e raparigas mortas todos os anos nos chamados crimes de honra, regra geral cometidos pelos seus próprios pais, irmãos ou maridos. Aliás, que fique na memória de todos que, em média, há 137 mulheres que são mortas diariamente por um familiar ou parceiro íntimo. E feitas as contas globais às mulheres assassinadas (cerca de 87 mil por ano), mais de metade continuam a ser mortas por homens com quem têm ou já tiveram relações de intimidade. Os principais carrascos das mulheres e meninas continuam a ser aqueles que supostamente as deviam amar, proteger e respeitar. E a própria casa, que deveria ser o porto seguro de todas nós, continua a ser o sítio que para elas representa maior perigo. Com o atual contexto de pandemia, revelava também recentemente a ONU que os pedidos de ajuda em linhas de apoio a vítimas de violência doméstica aumentaram cinco vezes. O cenário já era terrível, mas as restrições de movimento, o isolamento social e a insegurança económica fazem crescer significativamente a vulnerabilidade das mulheres à violência dentro de casa um pouco por todo o mundo.

Poder e dinheiro: a vantagem masculina

Na teoria, também todos sabemos que a disparidade salarial entre os sexos é inaceitável nas sociedades modernas, mas na prática este continua a ser um dos maiores obstáculos à igualdade que ainda enfrentamos. Na União Europeia, as mulheres ganham, em média, menos 16,2% do que os homens. Por cá, dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social mostram que as mulheres continuam a ganhar menos 14,4%, em números absolutos. A diferença remuneratória corresponde a 52 dias de trabalho pago ou 148,9 euros mensais, com vantagem para os homens, é claro. Diferenças que são ainda mais notórias à medida que aumentam as qualificações e as responsabilidades. Ou seja, quanto mais elevado o cargo, maior é a desigualdade salarial entre sexos. Se não entendem o impacto perverso que isto tem no presente, pensem, por exemplo, no futuro, como a questão das reformas miseráveis que muitas mulheres recebem: obstáculos na entrada no mercado de trabalho e na progressão de carreira, salários mais baixos, empregos mais precários e maior carga de trabalho não pago em cima dos ombros contribuem para que na velhice o empobrecimento das mulheres seja claramente mais elevado do que o dos homens.

Sabemos que há mais mulheres qualificadas do que homens, mas isso não se reflete posteriormente no mercado laboral, nem tampouco na esfera política. Apesar dos esforços para colocar em marcha acordos de cotas e demais medidas, as mulheres continuam sub-representadas nos cargos de liderança e tomada de decisão. Em 2019, elas representavam 39% dos trabalhadores do mundo e metade da população mundial em idade ativa, mas eram apenas 28% dos cargos de gestão. E no que toca a cargos parlamentares, por exemplo, a representação das mulheres nos parlamentos nacionais ainda vai, salvo erro, abaixo dos 25%. O número tem vindo a subir, é certo, mas dá também que pensar esta questão: um total de 82% das mulheres parlamentares em funções relataram ter sofrido alguma forma de violência psicológica enquanto cumpriam os seus mandatos. Escusado será dizer que um mundo que é governado e pensado no masculino dificilmente terá verdadeiramente em conta as necessidades femininas, e o resultado está à vista.

Eles “ajudam” em casa, elas mal têm tempo para respirar

De acordo com os dados mais recentes de 89 países, entre 2001 e 2018, num dia normal as mulheres gastam cerca de três vezes mais horas em trabalho doméstico e de prestação de cuidados não remunerados do que os homens. E ainda na semana passada, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género divulgou um relatório no qual concluía que a pressão sobre as mulheres no domínio da conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional aumentou no atual contexto da COVID-19. Sobrecarga de tarefas domésticas e de cuidados a crianças e idosos, empregos perdidos, horários de trabalho reduzidos e violência doméstica crescente provam que o impacto da pandemia foi mais forte nas mulheres e que fez “descarrilar as conquistas de igualdade” que tantas décadas demoraram a acontecer.

Infelizmente, podia continuar horas a debitar números que demonstram as múltiplas discriminações que as meninas e mulheres enfrentam nos dias de hoje. Até porque muitos deles escalam e/ou somam-se consoante fatores como o sítio onde se nasce, a classe social, a etnia, a orientação sexual, a idade, a religião, etc. Estes dados supracitados são apenas uma amostra, a ponta do icebergue. Alguns referentes a países subdesenvolvidos, onde as mulheres nem sequer têm direito a votar ou a ter conta no banco, outros totalmente transversais a todas as regiões do planeta, incluindo as sociedades modernas em que nós nos inserimos. Muito temos evoluído, é inegável. Mas é também inegável o enorme caminho que ainda temos pela frente. O machismo é estrutural, como um sapato velho totalmente moldado ao pé, que até parece confortável, mas que na realidade implica muito desequilíbrio. Vai sendo altura de o descalçar porque só assim poderemos caminhar de forma mais equilibrada enquanto sociedade. O Dia Internacional da Mulher é sobre a condição feminina, mas cabe-nos a todos e todas não só refletir sobre tudo isto, como passar à ação e sermos agentes de mudança.

Claro que haverá sempre quem resista, quem não queira mudar, há demasiados privilégios e estruturas de poder em jogo. Não é à toa que tão amiúde nos dizem e fazem crer que estas são as regras do jogo, que o mais fácil é mesmo aprender a viver com isto. “Sempre assim foi, nunca vai mudar.” Como cidadã, e atualmente também como mãe de uma menina, potencial futura mulher, eu não aceito que assim seja. Por mim, por ela, por todas nós. Se depois de colmatadas as disparidades que tornam a vida das mulheres num caminho cheio de obstáculos nos quiserem oferecer flores, não vejo mal algum. Mas até lá, por favor, tenham noção.