Se não se lembram deste caso que levou milhares de pessoas à rua em protesto um pouco por toda a Espanha, recordo o que aconteceu naquela noite das Festas de San Fermín: cinco homens levaram uma mulher embriagada para uma cave. Usaram da superioridade numérica e física para a encurralar, despir, apalpar e violar à vez. Tal como ficou claro em tribunal, a rapariga terá sofrido pelo menos dez agressões sexuais por via oral, vaginal e anal. Ela estava em estado de choque e não ofereceu resistência, deixando-se fica apática enquanto tudo acontecia. Os homens filmaram o ato, enviaram o vídeo a amigos e vangloriaram-se do mesmo: “Os cinco a foder uma gaja. Viagem memorável”. Este envio aconteceu num grupo de WhatsApp – intitulado pelos próprios como “La Manada” - onde existiam registos prévios de planos para cometerem um ato daqueles em grupo. Quando terminaram a violação coletiva, roubaram o telemóvel à vítima para ela não poder pedir ajuda. E foram-se embora.
Em abril do ano passado foram condenados a nove anos de prisão por abuso sexual, mas não ficaram atrás das grades. O facto de terem perdido o anonimato tornava “menos que impensável” que voltassem a cometer um delito, além de que iriam sofrer grande “rejeição social” e viviam “a 500 quilómetros da vítima”, não representando perigo para a mesma. Todas elas justificações do tribunal de Navarra para decretar liberdade condicional aos cinco homens após o pagamento de seis mil euros de fiança. Tal como já tinha escrito por aqui na altura, a onda de indignação que alastrou pelo país assentava no facto de todo o julgamento ter sido marcado por um claro sentimento de desvalorização das agressões sexuais que tiveram lugar naquela noite. A vida da vítima foi totalmente devassada com o intuito de comprovar que ela, na realidade, não foi violada, e que teve, sim, relações sexuais por livre vontade com os cincos homens. Mais uma vez, um reflexo de sistemas judiciais que continuam a atenuar estes crimes com múltiplas formas de descredibilização e de culpabilização das vítimas.
A sentença era um reflexo de tudo isto: os homens foram condenados a nove anos de prisão por abuso sexual, e não por violação. O facto de a vítima não ter esperneado, gritado por ajuda ou ficado com marcas corporais severas, pareceu ser o suficiente para atenuar a pena e a gravidade do crime, já que segundo o código penal espanhol, só seria uma violação se tivesse sido usada violência ou intimidação contra a vítima. Estar “passiva e neutra” não é comportamento de alguém que está a ser agredido ou intimidado, ouviu-se na altura no tribunal. Um ano depois, já em terceira instância, o Supremo Tribunal reconfigurou a moldura penal para violação coletiva. E em jeito de conclusão deixou claro: “O relato factual descreve um cenário de autêntica intimidação, sendo que em momento algum a vítima dá o seu consentimento aos atos sexuais praticados pelos acusados. Na agressão, a vontade do autor impõe-se pela força, seja através de violência ou de intimidação. Não se pode pedir à vítima uma atitude perigosamente heroica.”
O caso positivo que também deu que falar em Portugal
Palavras que vão ao encontro do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que também deu que falar pelas melhores razões na semana passada. “A inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência”, lia-se nesta decisão, que reconfirmava a pena de seis anos de prisão para um homem de 35 anos que violou uma adolescente de 14 anos. A defesa tentou atenuar a pena baseando-se na falta de resistência da vítima. Claro que é este o papel da defesa, tantas vezes recorrendo a argumentos que vão para lá da ética, e que tentam simplesmente humilhar a vítima e pôr em causa a sua conduta. Mas se por um lado o trabalho da defesa pode ser este, por outro é tarefa da magistratura não se deixar levar por juízos de valor com base em apreciações pessoais ou mitos, que estão assentes em pura especulação e estereótipos. Este acórdão, assinado pela Juíza Desembargadora Teresa Féria, é um belíssimo exemplo de como a justiça pode e deve funcionar neste casos, sem cair nesta teia estrutural de desconfiança histórica que recai sobre as vítimas: “A ausência de resistência física por parte de uma vítima de um crime de violação não pode ser considerada como uma forma de aceitação ou consentimento da agressão, mas pelo contrário expressa apenas o desejo de sobreviver a uma situação cujo controle não detém e relativamente à qual experimenta um sentimento de completa impotência. (...) A prática de um crime de violação não está relacionada com o desejo sexual nem resulta de qualquer impulso sexual irresistível, mas antes constitui apenas e tão só uma afirmação de poder do agressor sobre a sua vítima”.
Importa realmente percebermos que uma violação está sempre assente num jogo de poder do agressor sobre a vítima, exercido nas mais variadas formas (física, psicológica, etc). E cada vez que a justiça não funciona, o que acontece é a manutenção nefasta desse mesmo exercício de poder. Cada vez que uma vítima é devassada, humilhada, descredibilizada e fica sem resposta por parte de quem a devia proteger, está a ser alvo de múltiplas formas de vitimização, sem se conseguir libertar de uma teia em que o agressor se mantém sempre na posição de poder. Esse poder apenas se inverte quando o agressor é punido: quando se faz justiça é quando a vítima finalmente pode sentir que, de alguma forma, é ela que tem o poder da situação.
Num país onde ainda há pouco tempo um tribunal considerou tratar-se de um ambiente de sedução mútua quando uma mulher foi penetrada por dois homens quando se encontrava inconsciente numa casa de banho de discoteca, é refrescante ler isto num caso deste género. Sabe, contudo, a pouco uma pena de seis anos? Sabe. E é triste que o facto de a Justiça fazer um bom trabalho ainda seja notícia? É. Mas é também um bom indicador de que algo está a mudar. E em vez de desvalorizarmos decisões como estas, relegando-as para o patamar do “só se fez o que devia ter sido feito”, é importante que se lhes dê palco. Porque cada vez que se mostrar ao mundo que a justiça está a funcionar, e que pode funcionar, o mundo vai saber que a regra de três simples que durante séculos relegou os casos de violação para o patamar da normalidade e da impunidade já não é assim tão certa. Isto faz, obviamente, com que as vítimas ganhem confiança naqueles que as devem proteger – e há tantos casos que nem sequer chegam às autoridades porque as vítimas temem não ser levadas a sério. Por outro lado, faz com que os agressores deixem de sentir que podem sair impunes na prática de tais crimes. E quer queiramos, quer não, faz com o próprio sistema judicial possa repensar a sua forma de atuação. No geral, sabermos que a justiça está a fazer bem o seu trabalho leva-nos a mudar a nossa percepção sobre a gravidade e resolução destes crimes, e tudo isto faz parte do caminho de alteração de paradigma quanto à violência sexual. Porque não é apenas a justiça que tem de mudar a sua mentalidade, somos todos nós.