A vida de saltos altos

Uma barriga flácida num catálogo de moda: real consciência ou marketing?

É curioso como a imagem de uma mulher com uma barriga ligeiramente flácida num catálogo se torna viral. Mas se por um lado é bom sinal esta disrupção dos habituais estereótipos da moda, por outro não será um exagero acharmos que por uma grande marca usar uma foto assim a podemos considerar logo um arauto de inclusão e diversidade? E será esta opção uma questão de real consciência social ou de marketing?

Estava eu em biquíni quando comecei na semana passada ver a nova coleção de roupa de praia da H&M a circular nas redes sociais, endeusada por frases como “finalmente uma marca que mostra a mulher real” ou “aplausos a um catálogo que elogia a diversidade”. Confesso que fiquei curiosa e que fui ver as imagens que tanta gente partilhava, convencida de que ia encontrar uma panóplia de mulheres com diferentes tamanhos e formatos corporais, idades, tons de pele, cabelos, etnias, etc. Mas não, o que encontrei foi uma campanha com várias modelos, e onde pelo meio surgia uma mulher que fugia ligeiramente à norma da habitual representação feminina no universo da moda, porque tinha uma barriga um pouco mais flácida. Já dentro do catálogo online, conseguíamos encontrar umas quantas imagens com leves estrias e marcas de celulite em várias modelos e uma outra modelo com excesso de peso. Mas será isto o melhor que conseguimos alcançar no que toca a inclusão e diversidade de representação feminina num catálogo ao fim de já alguns anos a debater este tema? A mim, sabe-me verdadeiramente a pouco. Contudo, a forma como foi recebida, com direito a elogios esfuziantes, demonstra por um lado quão sedentas as pessoas estão de algo que fuja aos estereótipos das últimas décadas, por menor que seja, mas ao mesmo tempo quão desfasada está ainda a nossa noção coletiva de realidade da diversidade corporal. E, é claro, a apropriação de causas para efeitos de marketing.

Não é a primeira vez que esta marca usa mulheres que fogem às normas da moda, já no ano passado um ou outro refego como exceção à regra, e até mesmo uma cicatriz na barriga, apareciam nos seus catálogos. Outras marcas como a Oysho, por exemplo, também usaram no ano passado imagens sem retoque de estrias e celulite no catálogo de lingerie, desmistificando a ideia errada de que as mulheres magras não têm este tipo de marcas. Mas mesmo que a amplitude de representação de corpos femininos nestas iniciativas seja reduzida, escusado será dizer que encontramos obviamente um lado positivo nisto: há um quebrar de estereótipos ao dar-se espaço a imagens que fogem à regra. E por mais pequeno que seja esse fugir à regra, é um passinho em frente na normalização de diferentes imagens corporais no espaço público, aquele do qual todos usufruímos e cujas mensagens nele presentes tanto nos influenciam, seja consciente ou inconscientemente. Num mundo onde não existem duas pessoas iguais, mas onde ainda nos é vendida a ideia de que há um ‘corpo ideal’, isto é obviamente essencial e bastante benéfico para uma maior aceitação coletiva da imagem feminina. Mas chega? E é mesmo um sinónimo real de diversidade? Por outro lado, será que estamos prontos para aceitar a realidade como ela é? Ou mesmo nisto do elogio à diversidade ainda queremos uma triagem do que é esteticamente desejável ou não publicamente? É que uma barriga ligeiramente flácida é apenas isso.

Independentemente de quais as marcas que têm vindo a dar estes passinhos, é necessário percebermos que não basta termos uma ou duas modelos fora do habitual estereótipo numa secção de biquínis, é necessário, por exemplo, que essa múltipla representatividade de corpos femininos chegue a todo o catálogo destes retalhistas que usam a bandeira da diversidade como manobra de marketing. Até porque a realidade é que as mesmas calças e vestidos que estão habitualmente nas fotos divulgação das coleções, invariavelmente fotografadas em modelos com corpos de dimensões reduzidas, depois estão disponíveis em tamanhos maiores nas lojas. Ora, se as peças de roupa existem numa ampla escala de tamanhos, porque é que continuamos apenas a representar nos catálogos as imagens de mulheres que usam os tamanhos pequenos? E porque é que quando quebramos essa regra, teimamos em usar os restantes tamanhos corporais como uma mera exceção dentro de uma globalidade estandardizada e não o fazemos de forma realmente equilibrada? A questão dos tamanhos é só uma ponta do icebergue, muitas outras questões deveriam ser tidas em conta.

Depois há também a forma como a mensagem é mediatizada perante as massas, tantas vezes com pouca reflexão nas palavras usadas, palavras que até pretendem passar uma mensagem positiva mas que acabam por fazer o contrário. Lembro-me de ter lido uma notícia de elogio à campanha e ao fim dos estereótipos cujo título dizia: “Perfeição? Não, obrigada”. Quer-se com isto dizer que as mulheres que têm uma barriga ligeiramente flácida não são perfeitas? E se não o são, é porque um ideal de mulher perfeita existe e tem um formato e estética exclusivos? Não serão este tipo de frases reforçadoras de estereótipos por si só?

Voltando às marcas, seria uma ingenuidade acharmos que não há um intuito financeiro por detrás desta súbita vontade de inclusão. Já há uns tempos reforcei por aqui que o mundo está a mudar e que é inequívoco o crescente questionamento das mulheres quanto às múltiplas regras, estereótipos, expectativas e demais condicionantes que têm servido de espartilho à sua aceitação individual quanto ao corpo. Termos um mundo onde há cada vez mais mulheres que se sentem, ou se querem sentir, bem na sua pele, independentemente de não serem iguais às imagens femininas inalcançáveis que figuram em revistas, catálogos ou spots publicitários, começa a ser um problema para muitas marcas. E claro que é preciso combater isso, não só acompanhando a evolução de mentalidades, como fazendo parte dela, negócio incluído. As marcas adaptam-se por uma questão de sobrevivência, tão simples quanto isto. Mesmo que não sejam coerentes com o percurso que está para trás, mas regra geral isso também interessa pouco ao consumidor.

Fotografias como esta fazem parte de estratégias de marketing idealizadas a pensar precisamente na atual tendência da positividade corporal e na possibilidade de se conquistar clientes e se gerar vendas a partir da apropriação desta causa. Neste e noutros temas, é hoje uma necessidade das marcas mainstream projetarem uma ideia de consciência social porque sabem que isso vai ao encontro dos ideais de boa parte dos seus clientes. Mais uma vez, claro que há um lado positivo nisto, mas se queremos falar de consciência, há que tê-la na globalidade. Por exemplo, é coerente apostar-se em catálogos de elogio à mulher real ou à sustentabilidade, como sinal de consciência social, se depois boa parte da manufaturação desses mesmos produtos é feita com recurso a mão de obra para lá precária, perpetuando os ciclos de exploração laboral e pobreza que atingem maioritariamente trabalhadoras do sexo feminino? Vale a pena pensar nessas mulheres reais também, diria eu. Mas isso fica para outra prosa.