Quando era miúda lembro-me perfeitamente de ser repreendida pela minha mãe com a frase: “As meninas não se sentam de pernas abertas”. Quase de certeza que praticamente todas as mulheres que lerem isto se vão rever nesta repreensão, que fez e continua a fazer parte das nossas educações. Continuamos a deixar claro que as meninas bem-comportadas não devem andar por aí a revelar o que têm entre pernas, mesmo que estejam de calças e que isso não passe de uma sugestão.
Claro que ninguém quer pensar muito nisto, até porque esta é uma repreensão cliché que parece fazer parte do manual de educação das meninas deste mundo, mas a verdade é que isto de “as meninas não se sentam de pernas abertas” não passa de uma sexualização da imagem feminina desde tenra idade. Basicamente, quando as meninas, futuras mulheres, nem sequer têm bem noção do que têm entre as pernas, e de que um dia essa parte do seu corpo poderá ser um enorme veículo de prazer sexual. Faz algum sentido?
Ontem, deparei-me com um artigo do Delas.pt que falava de uma nova tendência das redes sociais, alavancada por atrizes, modelos e demais figuras públicas femininas: o #womanspreading. Basicamente, mulheres de vários pontos do mundo andam a partilhar fotos suas de pernas abertas, como forma de quebrar este estereótipo associado ao suposto “mau comportamento” das meninas e mulheres (já agora, não deixa de ser curioso que a sexualização de uma postura física feminina tenha o cariz de “mau comportamento”).
Com que intuito? Em jeito de movimento feminista, pretende-se desconstruir os preconceitos associados à imagem das mulheres que se sentam de pernas abertas. E porque raio o havemos de fazer? Porque não há, nem devia haver, nada de mal em uma menina ou mulher se sentar como bem lhe apetece. Que eu saiba, aos meninos e aos homens nunca lhes foi pedido tal coisa, ou foi? Então porque é que temos de limitar o sexo feminino na sua liberdade de movimento e de postura no dia a dia, colocando-lhes limites e regras sem sentido, como esta?
Já falámos por aqui do dito ‘manspreading’ (ato masculino de estar de pernas excessivamente abertas em bancos partilhados, no espaço público), que levou a que em países como Canadá, Bélgica ou Espanha fossem feitas campanhas a alertar os homens para a falta de civismo de tal atitude nos transportes públicos. Não deixa de ser irónico que no início do século passado esse mesmo tipo de alerta fosse dado nos transportes de algumas cidades norte-americanas, e que cem anos depois ainda seja necessário educar pessoas para juntarem as pernas quando dividem espaço com os demais. Enfim.
Contudo, o movimento #womanspreading nada tem a ver com isso. E a diferença é clara: o primeiro está relacionado com a necessidade de manter um comportamento cívico e de respeitar o espaço alheio quando se partilha um autocarro, por exemplo; o segundo vai ao encontro da desconstrução de regras sociais que recaem exclusivamente sobre o sexo feminino, e que estão assentes em juízos de valor e moralismos de algibeira.
Todos nos habituámos a ver imagens de mulheres de pernas abertas em publicidades, filmes, videoclipes ou catálogos de moda, por exemplo. Regra geral, imagens hipersexualizadas da figura feminina, com cariz propositadamente erótico, com o intuito claro de captar a atenção do consumidor final. Consumidor esse que é facilmente permeável a tal estímulo por via da sugestão sexual que uma mulher aparentemente dá ao surgir de pernas abertas. É disso que estamos a falar quando falamos de mulheres de pernas abertas nestes veículos de comunicação às massas: de uma ideia sexual que surge quase automaticamente a quem olha para ela.
Curiosamente (ou não), essa imagem sexual tem sido alimentada num misto de ideia provocadora, com uma conotação algo suja ou devassa (como acontece com a vida sexual das mulheres que têm diversos parceiros, que continuam a ser consideradas umas galdérias). E a verdade é que ninguém se choca com esta pornificação da mulher ou a considera deselegante. Contudo, não me venham dizer que alguém considera elegante, casto ou simplesmente normal ver uma mulher de pernas abertas nos ambientes da – chamemos-lhe assim –vida real. Mas a verdade é que deveria ser.
É por isso mesmo que surge este movimento com recurso a fotos. A ele já se juntaram nome como Bella Hadid e Bella Thorne, mas também centenas de mulheres anónimas que consideram – e com toda a razão – que não faz sentido alimentar este tipo de ideias sobre o que é correto ou não uma mulher fazer em sociedade. Principalmente, quando existem dois pesos e duas medidas ao falarmos da mesma situação para homens e mulheres.
Há mensagens que temos de reter no meio disto: não, estar de pernas abertas não é um convite sexual. Tal como não é uma provocação erótica, nem tampouco uma forma de desleixo ou de deselegância. Uma menina, tal como uma mulher, não é porca, nem mal-comportada, por se sentar de pernas abertas no espaço público. Ou será que quando vemos homens de pernas abertas fazemos este tipo de assunções por sabermos que o órgão sexual está exatamente naquele espaço entre as pernas, por baixo da roupa? No máximo, uma mulher poderá ser inconveniente e pouco civilizada caso esteja a invadir o espaço alheio, tal como acontece no chamado manspreading. As regras do civismo não têm género.
Já sei que os trolls da internet vão olhar para este movimento e fazer a habitual pergunta: “Mas as histéricas das feministas não têm temas mais importantes?”. Minha gente, haverá sempre. Tal como me parece ser necessário existir sempre espaço para se ir refletindo em conjunto sobre estas subtilezas do machismo, perpetradas por homens e mulheres, que na verdade condicionam o sexo feminino na sua liberdade individual. Tão simples quanto isto.