Muitos escreveram sobre a mítica Terra do Fogo. Muitos sonham com ela, percorrendo o território que nos leva até ao fim do mundo, a um passo da Antárctida. Foi o fogo que lhe deu o nome. Mas o seu elemento é a água. E natureza em estado puro. A Terra do Fogo é um arquipélago quase com o tamanho da Irlanda. Flora e fauna riquíssimas, mística própria e muito para ver. Mas, sobretudo, para proteger.
Para trás, muito para trás no tempo, em águas longínquas. Um cidadão de Ponte da Barca, circum-navegador, ficou impressionado com o número incontável de fogueiras que avistou em território nunca avistado por um europeu. Essas fogueiras, acesas noite e dia, aqueciam os índios Yamana e os Selkman, demarcando o seu espaço, que se chamava Karunkinka. Fernão de Magalhães baptizaria esta região como a Terra do Fogo.
Só muito depois da sua expedição quinhentista, que havia de mudar as rotas do mundo, as nações argentina e chilena chegaram a um acordo pacífico sobre a divisão desta região. Em 1881, a regra e compasso traçaram-se linhas de fronteira geométricas em território inóspito, ficando a metade ocidental para o Chile, a metade oriental para a Argentina.
Em suma: "Bienvenidos a Tierra del Fuego", onde começa o emaranhado administrativo e territorial entre o Chile e a Argentina. Para trás, o Estreito de Magalhães, que separa também o continente sul-americano. E, atrás deste, uma estrada de ninguém, de gravilha, atravessada por mini-manadas de lamas (guanacos) atrevidos e por camiões no limite da velocidade, em trânsito, provenientes ou com destino a Ushuaia, maior cidade da Província da Terra do Fogo, que juntamente com Rio Grande são as maiores cidades do que da Terra do Fogo é argentino. Porvenir, na vizinhança de Punta Arenas, em plena Região de Magalhães, é por sua vez a maior cidade do sector chileno. O epíteto de Porvenir, como se fosse preciso, não podia estar mais a propósito: "O deserto da Patagónia".
Seja como for, na verdadeira dimensão da Patagónia, não fosse um choque colossal de placas tectónicas ter transformado em arquipélago a Terra de Fogo, esta seria de si uma ínfima parcela. Viajando, portanto, nesta Patagónia remota, só há vislumbres de gente. E uma estrada sem fim.
Quando pelo caminho há estações de abastecimento de nafta, o melhor é mesmo parar. Se for na cidade de Rio Grande, que tem um grande rio, não é propriamente um lugar convidativo, sofre de letargia e de interioridade e torce o nariz ao exterior. É claro que, como em tantas cidades argentinas, pode ser apenas uma capa que cobre a sua verdadeira natureza. Pode ser só um falso silêncio reprimindo a vontade de falar, a simpatia argentina escondendo-se nas ruas simétricas e pobres de Rio Grande. Aparentemente, é mais seguro assim, é daquelas cidades que nos convida a partir.
Para a estrada de novo, encurtando a distância para Ushuaia, numa constante mudança de cenários, de pedra e aridez, de deserto dando lugar a vegetação abundante, flores de cores múltiplas, de cavalos selvagens correndo na pampa, horizontes de montanhas andinas cobertas de neve sob o sol abrasador do Verão austral, terrenos de garganta seca, outros cobertos de água, desfilando em metragem road movie, relativizando a estrada e os seus quilómetros.
No fim do mundo
Ushuaia é a capital argentina da Província da Terra do Fogo. Onde aguarda por nós o fim do mundo, que podia muito bem ser um começo, pintado de fresco como um paraíso com benefícios fiscais, tax free, com pressa sazonal de vender tudo e mais alguma coisa a quem chega. Uma cidade pequeníssima, mas a rebentar pelas costuras, sem saber como crescer, crescendo para onde não devia, invadindo um dos pulmões do território da Terra do Fogo, que a contorna, já que a cidade nasceu numa bacia do canal Beagle - ainda a cerca de 130 quilómetros do cabo Horn -, que completa o cerco natural a Ushuaia.
Sendo fim, estranha esta vocação de Ushuaia para ser lugar de passagem, apesar das inúmeras vantagens que a sua autoridade administrativa oferece aos argentinos que queiram povoar aquele fim de mundo, que fez dessa sua condição meridional, o seu marketing para turista ver. Neva em Ushuaia quatro a seis meses por ano. O Inverno é estação de chuva quase ininterrupta. Mesmo quando é Verão, aparentemente só os nativos de Ushuaia é que sabem. Nativos, ou coisa que o valha, já que a explosão demográfica da cidade é um fenómeno recente. De uma cidade que praticamente não tinha habitantes, virada exclusivamente para o seu porto, está hoje em regime de sobrelotação, com 67 mil habitantes às voltas sobre si próprios, angariando plata para o Outono, Inverno e Primavera, que se conjugam numa longa estação de provação.
Na cidade mais austral do mundo, tudo está em promoção. Se nos distrairmos a andar na rua, é provável que se tropece no saco de lixo mais austral do mundo, ao lado da loja que vende as t-shirts mais austrais do mundo, passando pelos quadros de ardósia a anunciar as ementas mais austrais do planeta, nos restaurantes com os preços mais austrais do mundo, máquinas fotográficas e material de trekking, roupas quentes para quem estava sob a impressão de que era Verão, gorros em formato de cabeça de pinguim e barbatanas de baleia, agências de turismo a oferecer preços de ocasião para as viagens à Antárctida, uma semana a bordo de um love boat quebra-gelo rumo ao continente mítico, quase sempre transportando expedições de cientistas multinacionais, quase garantidamente com tripulação filipina. Ainda bem que a Terra do Fogo não é a sua capital. Ainda bem que as cidades só interrompem os santuários naturais que as rodeiam e lhes permitem respirar.
A escassos quilómetros desta cidade atarefadíssima, que em tempos nasceu para degredo, encontra-se o Parque Natural da Terra do Fogo, criado em 1960, com 63 mil hectares de paraíso, que estão exactamente como deviam. Para lá, nada melhor do que apanhar o "comboio do Fim do Mundo", onde é recriado o ambiente com os reclusos que o utilizavam quando Ushuaia era degredo, usando roupas à "irmãos Metralha" e grilhões que hoje são de material ultraleve. No parque, tanto se pode observar hordas de turistas japoneses a fotografar tudo o que mexe, como o voo dos condores, os guanacos, os pica-paus patagónicos, tudo o que a natureza oferece quando está a salvo de nós. Não se enganem, a Terra do Fogo é território duro. Mas nisso não pode haver leveza maior. Nem beleza.
Na Terra do Fogo, onde se fica depende sempre de como se viaja. Se for em excursão, organizado está. Viajando de carro, por sua conta e risco, então é melhor tomar precauções. As estradas são muito duras, os acidentes são uma possibilidade sempre presente, e os furos uma constante. As estações de serviço não são abundantes, sobretudo nas transições entre as fronteiras chilena e argentina da Terra do Fogo. No Verão austral, a melhor época para viajar na Terra do Fogo, que não a mais bonita, os dias são quentes, mas as noites são gélidas. Porém, quanto mais próximos do Pólo Sul, mais longas são as horas de luz. Os dias só se transformam em noite por volta das 23 horas.
Como chegar
Se optar por avião directo para a Terra de Fogo, a solução é apanhar um voo para Buenos Aires e na capital argentina marcar um voo doméstico para a cidade mais austral do mundo. Os preços destes voos variam de acordo com a época, mas ficam-se entre 200 e 300 dólares. Se optar pelo sector chileno, um voo para Santiago do Chile, e da capital para Punta Arenas, fica mais caro, entre 300 e 500 dólares. Ou para Ushuaia, com preços idênticos.
Onde ficar
Em Ushuaia, a maior cidade argentina da Terra de Fogo, também a mais procurada, não faltam hotéis, albergues e parques de campismo. O Camiño del Andino é um parque de campismo lindíssimo, muito recomendável, até porque funciona numa pista de esqui, que no Verão está naturalmente encerrada. Os preços dos hotéis em Ushuaia variam entre os 30 e os 200 dólares. Em Punta Arenas, no Chile, nas proximidades da Terra do Fogo, encontra-se o Hotel Condor. Os preços rondam os 100 dólares a noite. E o hotel é um arquivo vivo da História.
O que comer
Na gastronomia patagónica, aqui bem representada, é incontornável o cordero, de preferência um rodízio de cordero, cujos sabores são impossíveis descrever.
A não perder
- Para os mais abonados, uma vez em Ushuaia, é sempre possível marcar lugar num navio quebra-gelo turístico, que nos leva à Antáctida, a cerca de mil quilómetros de Ushuaia; uma semana a 15 dias de barco, com preços que vão de quatro a seis mil euros. - O Parque Nacional da Terra de Fogo, junto a Ushuaia. - A navegação no canal Beagle. No porto de Ushuaia há várias embarcações de aluguer. - No Chile, próximo da cidade de Punta Arenas, absolutamente imperdível o Parque das Torres del Paine, património mundial da UNESCO, que inclui as montanhas Paine Grande, Cuernos, Admiral Nieto e, claro, as Torres).
Texto publicado na edição do Expresso de 25 de Julho de 2009