ARQUIVO Ócio

Lições de um navegador solitário

Já cruzou o Atlântico quatro vezes, e as milhas que acumula correspondem a três voltas ao mundo. Ricardo Diniz é um velejador solitário que aprende as lições no mar para as vir contar em terra

Joana Madeira Pereira (www.expresso.pt)

Antes era assim: a onda vinha imensa, agreste, e virava-lhe o barco. Ele caía à agua, derrotado, magoado com o mar. Maldizia aquele companheiro de viagens tão incerto e parecia-lhe injusta a sua sorte. Agora, Ricardo Diniz já deixou de o levar tão a peito. O velejador português, que ganhou, entretanto, idade e experiência, desmistificou o mar. Uma onda já não é um castigo, é apenas mais um murro de água que o atinge na cabeça. "Sofri muito quando percebi que o mar não era aquele ser absoluto e romântico que imaginava, mas consegui uma frieza que me ajuda melhor a sobreviver quando estou a navegar durante tanto tempo", confessa. Aprendeu a ser indiferente às temperaturas, deixou de se compadecer com as suas debilidades. "Sou o ser humano normal, Ricardo Diniz, que tem sentimentos e tirita quando tem frio mas, ali, no meio do oceano, consigo ser um bicho estranhíssimo que desliga as emoções e just get the job done. Vem aí uma tempestade? Que venha ela!"

Solitário de profissão - não de natureza -, soube aos oito anos que queria dar uma volta ao mundo num barco à vela. Sozinho. Aos 33 anos, ainda não concretizou a aspiração, apesar das milhas que coleciona serem o equivalente a três viagens de circum-navegação. Mas já passou por quatro travessias transatlânticas (a primeira aos 18 anos) e prepara-se para, em outubro de 2011, atravessar o planeta azul em vela oceânica, em solitário. Se tudo correr bem, cumprirá o feito na Portugal Ocean Race, uma regata mundial que está a promover com mais dois sócios estrangeiros e que partirá de Portimão, com passagem garantida pela África do Sul, Nova Zelândia e Brasil, para acabar, meses depois, no porto de partida.

Nesta sua expedição marítima não carrega apenas uma ambição pessoal. Quer levar a imagem de Portugal mundo fora, divulgando empresas, produtos, a história de um país. Tem dedicado os últimos anos "ao mar, à vela, ao empreendedorismo, a vender Portugal". Impulsos que lhe têm valido incursões pelo mundo das empresas e da liderança. Faz contas e tem sete empresas: a primeira, uma agência de marketing e comunicação, a Delfinus, está em vias de ser vendida, mas gere negócios em áreas tão díspares como a consultoria, restauração, investimentos imobiliários e construção náutica. Por agora, faz planos para entrar no negócio dos têxteis, vinhos e azeite. Tudo com carimbo nacional. "Tendo a entrar em áreas em que vejo que há muitas coisas mal feitas. Sinto sempre que, se calhar, consigo fazer melhor e, acima de tudo, servir melhor os clientes", atira.

É pelo seu dinamismo, mas sobretudo pelo selo que se lhe colou de 'velejador solitário', que é chamado a escolas, universidades e empresas para dar testemunho das suas aventuras marítimas. Fala sobre riscos calculados, a importância de querer ser bom no que se faz, não ter medo de ir à luta nem de falhar. Como os seus antepassados portugueses, há mais de cinco séculos atrás, quando desbravaram os mares: "Que povo incrível, que coragem, que fé", exclama.

Navegador sem barco

Cresceu na Costa da Caparica, "não era de Cascais e como não tinha três nomes" nem a família a tradição de velejar, nunca teve embarcação própria. Além do surf que praticava, passava os seus dias - e algumas noites - de adolescente na Doca de Santa Marta, mesmo em baixo da Ponte 25 de Abril, a limpar barcos. Tinha tempo para pensar e descortinou a maneira certeira de fazer seu aquilo que não era dele: arranjar patrocínios que tornassem realidade os seus projetos. Começou a contactar empresas, a agendar reuniões com presidentes, a perseguir o sonho.

De todas as vezes, conseguiu alugar a embarcação em que, depois, seguia viagem. Mas nem sempre chegou ao destino. Por isso, diz, aprendeu a lidar com o fracasso. Como daquela vez, a caminho do Brasil, em que não conseguiu desviar-se de um entre os milhares de contentores que povoam os oceanos e espatifou um barco que havia demorado quatro anos a ser construído, numa parceria entre o Instituto Superior Técnico e uma universidade do País de Gales. Andou quase 20 horas à deriva, até ser resgatado por um paquete. Os pensamentos atormentavam-no: "Nem era tanto pelo barco, mas pensar que estava a desiludir as dezenas de pessoas envolvidas naquele desafio. O choque do embate é brutal, mas passa. O pior é termos de lidar com a desilusão dos outros", afirma Ricardo.

Foi nessa altura que descobriu Ana, a sua psicóloga de desporto, que o ajuda a digerir as mazelas, a aceitar "o falhanço de penáltis" e a "deixar passar frangos". Mesmo assim, quando os paquetes se lhe atravessam no caminho, uma tempestade o apanha desprevenido ou uma avaria o martiriza, é impossível não tremer perante a inevitabilidade de um acidente. "Tem de se ter capacidade de reação. Eu domino o medo pela ação. E isso aplica-se a tudo na vida. Achamos que há imensas coisas complexas, mas se criarmos prioridades e as digerirmos uma a uma, vemos que não é assim tão complicado. No barco é exatamente isso que faço: criar prioridades. Tenho de comer porque preciso de energia para resolver aquele problema e, uma vez solucionado, posso dormir. Mas estou estoirado, só queria mesmo descansar. Mas se adormecer, o problema vai continuar ali, vai escalar, piorar e, quando acordar, pouco ou nada poderei fazer porque não me alimentei e não tenho energia. É tramadíssimo, mas este xadrez constante, diário, acaba por ser bastante eficiente", admite.

Quando chegou a Londres, onde viveu entre os cinco e os onze anos, sabia apenas 17 palavras em inglês que o pai, diligentemente, lhe ensinou. Mas não bastavam para ser compreendido pelos colegas e professores, que o mandavam sozinho para o recreio, onde brincava com "árvores, minhocas e outros bichinhos". Estreitou laços com a natureza e a solidão. "Sendo filho de pais divorciados e tendo vivido em diferentes países, passava muito entre cá e lá. Estava sempre a despedir-me da minha mãe ou do meu pai", explica.

Estas experiências deram-lhe o traquejo para enfrentar as despedidas e o silêncio do mar. "Não é fácil, mas a solidão, dentro de um barco, acaba por ser diferente. Gosto mesmo de lá estar, preenche-me imenso e tenho tanto para fazer... Fui obrigado a olhar para as despedidas de outra forma. Antes, esse momento era debilitante, levava dois dias para recuperar do stresse, afastar a imagem da minha avó a chorar e a angústia dos meus pais. Hoje, já é mais fácil". Faz, agora, um exercício que o ajuda a despistar a ansiedade do adeus: despede-se dos familiares e amigos vários dias antes da partida e vai viver para o barco. "Na minha cabeça, quando chega o momento da despedida, já estou em viagem. Tudo acontece de forma muito mais casual", revela.

Enganar o silêncio

Ricardo passa semanas, meses, sem ouvir a voz de outrem. Por isso, fala muito, canta, assobia. Mas é a rezar que passa grande parte do seu tempo. O mar já foi a sua religião, hoje estuda a Bíblia. "Velejar mostrou-me que há muitas coisas que não podem ser apenas coincidência", diz. Acompanhou, por mar, a primeira edição Lisboa-Dakar: a viagem foi sofrida, atribulada por tantos problemas técnicos. Ao chegar à capital do Senegal, "sabia que tinha tido a ajudinha de alguém, de outra forma nunca teria chegado ao meu destino. Foi estranhíssimo quando saltei do barco e ninguém saiu atrás de mim".

Faz questão de raramente ligar o telefone via satélite para não cair na armadilha de ligar para os amigos. "Estão reunidos, a jantar frango assado e eu lá no meio do oceano. Quando desligas, sentes-te adaptado, mas começas a pensar nos teus companheiros na praia, no mesmo frango assado... É difícil", conta Ricardo. Na maioria das vezes, o telefone só serve para se ligar a escolas onde, através das suas expedições, os professores aproveitam para ensinar aos alunos alguns conceitos de geografia, história, biologia ou matemática. "Ligam ao altifalante e, de repente, ali estou eu, a milhares de quilómetros, a falar-lhes sobre o que estou a ver".

Preparar-se em terra. Não é por estar no mar, confinado a uns poucos metros quadrados de superfície sólida, que tem de viver uma existência de sacrifício e desconforto. Há pormenores que fazem a diferença: com ele leva os livros, a música e a almofada de sempre. "Parece parvo, mas aquela é a minha almofada, não tenho de deixar tudo para trás".

E porque quem vai para o mar se avia em terra, tudo está planeado ao mínimo detalhe: "Tal como numa empresa, é preciso gerir objetivos e recursos limitados. Por vezes é um exercício difícil de levar avante". Ricardo Diniz gosta de ser "bicho do mar", desliga as luzes e navega no escuro. Também não usa em abundância os tanques de água potável e evita tomar banho com água doce. "Lavo-me com água salgada e tiro o sal com uma esponja, mas até gosto de sentir o sal na pele", explica.

Durante semanas a fio não toca em dinheiro, passeando-se naquela "casinha de bonecas flutuante": armazena os víveres num pequeno compartimento e, todas as semanas, vai às "compras". Escolhe sobretudo comida liofilizada, em que é necessário adicionar apenas água e, se for preciso, mistura atum com batatas fritas e molho pesto. "É fascinante: controlas o teu mundo, tomas decisões muito simples mas que te dão grande controlo e muito prazer", reconhece o velejador.

Dormir implica uma gestão mais cuidada, não vão os radares falhar em alto mar. Normalmente, Diniz dorme quatro horas por dia, em turnos de 20 minutos de cada vez. "Funcionamos como uma espécie de mealheiro: vamos acumulando horas de sono. Aguentamo-nos se conseguirmos dormir mais ou menos seis horas em cada 24. É giro: vivemos mais minutos. Eu vejo todas as horas a passar", replica.

Um solitário que gosta de pessoas Aos 17 anos, voltou a Inglaterra para ingressar no curso de Ciência Ambiental Marítima, mas as aulas ficaram rapidamente esquecidas quando o apelo da vela se tornou mais forte. Tirou o Yatch Master Ocean e dedicou, definitivamente, os seus dias ao mar. Passou pelas Caraíbas, onde foi skipper de luxuosos barcos, numa existência muito diferente daquela que marca os seus dias solitários em alto mar. Na verdade, Ricardo Diniz gosta de estar rodeado de pessoas, de sentir que está a construir uma equipa. Ainda agora, regressou a Portugal depois de vários meses a recuperar uma embarcação de grandes dimensões e a comandar a rota entre vários portos europeus.

"Aprecio a parte da coordenação de uma equipa. E não digo isto armado em chefe que gosta de mandar: adoro ver as peças dos puzzles a encaixarem e as pessoas a evoluírem", confessa. Tanto na vida a bordo como nas suas empresas (que envolvem mais de duas dezenas de pessoas), Diniz faz questão de dar o exemplo e de ultrapassar limites. Quando, num estaleiro italiano, lhe disseram que a recuperação de um barco levaria quase seis meses, o português garantiu que faria o trabalho em cinco semanas: organizou uma equipa, meteu as mãos ao trabalho e sujou a roupa e o cabelo com tinta, como todos os outros. Ao fim de quatro semanas, a intervenção estava concluída.

"Sou das pessoas mais ocupadas que conheço e, no entanto, uma das que mais tempo tem: começas a conhecer as pessoas certas, a delegar, a gerir. Eles fazem o seu trabalho e ficam felizes por eu tratar das coisas que apenas eu posso fazer. Em terra ou no mar, o meu trabalho é o mesmo: ser o maestro", avança. Não deixa, contudo, de se sentir diferente: foi sempre assim, desde criança, quando estudava meteorologia para antecipar o comportamento das ondas que surfava. Ainda hoje é no mar que sente o seu eu mais profundo. É a casa, o templo para onde se retira para pensar. Foi pelo mar que aprendeu uma grande lição: a humildade. "Quando estás a levar pancada das ondas, compreendes que não és ninguém. O mar põe-te no teu lugar. Não há espaço para vaidades. Às vezes, estás em circunstâncias lindas: o barco está a descer ondas enormes, sentes estar a voar. Estás maravilhado, sentes-te poderoso. Mas, no fim, sabes que tens de bater a bolinha baixa. É ele quem te controla".

Publicado na Revista Única do Expresso de 23 de Outubro de 2010