A Córsega não se vê, sente-se. Uma visita pode chegar ou pode não servir para nada. Tudo ali é trabalhado pelos sentimentos, a começar mesmo pela geografia. Nascida em pleno Mediterrâneo, é feita de altos e baixos. Acidentada. Sinuosa. Entrecortada por montanhas onde espreitam precipícios e de onde se avistam horizontes infinitos. Brutal no diálogo constante que estabelece entre a mais agressiva vegetação, o mais árido deserto de rocha nua e o mais suave dos mares. Todos os estados de espírito são permitidos.
Mas a tudo isto não se pode chamar contrastes! Não há contraste possível entre a luz e a cor desse mar que se desdobra entre o forte azul e o verde turquesa e a solidez agreste da pedra ou a força invasora da vegetação. O peso é o mesmo numa ilha que em simultâneo vive de uma leveza rara.
Olhe-se a bruma, o negro das nuvens a fustigar a terra, sinta-se o vento e o calor do sol num só dia. A experiência é tão forte para os olhos como para a pele. E é o mistério indecifrável desta plenitude que se agarra ao corpo, se cola à memória, se torna apelativo como um vício e faz nascer a paixão, o tudo e o nada.
Estamos em território primitivo (o adjetivo não é pejorativo). Terra e gente rude e dura. Sociedade tão matriarcal quanto machista. Herança de uma sobrevivência histórica carregada de reveses e disputas políticas. Mas também em terra de gente crescida ao lado de princípios de honra, valores de amizade. Gente que se abre à lealdade e em nome dela se fecha. Terra de silêncios, portanto.
E lá se adensa o mistério por esse tudo e esse nada. Adensa-se no denso maquis (vegetação cerrada) que cobre encostas e encobre muitos javalis. As histórias dessa luta entre o homem e o animal caminham noite fora ao ritmo da batida irregular do real versus o irreal. Acordam ainda de manhã, quando o sol se espelha no mar e o quente das águas fala de qualquer coisa parecida com um sonho.
Sentir a ilha
A Córsega não se vê, sente-se. Está naquela arquitetura limpa, despojada, e na outra pitoresca, no velho palacete e na torre mais antiga, está nas ruas estreitas, nos prédios altos, nas marinas mais pequenas e nos portos de pesca, nos bares de praia e nos hotéis despidos de sofisticações, está nas velhas construções, nas cidadelas, nas ruínas de aldeias abandonadas, nas curvas e contracurvas das estradas, nos jazigos ao lado de casa ou no cimo da montanha mais isolada. Está no grito da coruja que pia à noite e no do abutre ou milhafre que voa de dia à procura de comida. Está na garrafa de vinho que chega à mesa - tinto, branco e rosé -, nos sonhos de castanha, nos gelados de todos os sabores, no peixe fresco e no queijo a tresandar, no salsichão e no presunto.
O quadro não fica completo, está sempre por terminar, o desta Córsega que é França mas não francesa, italiana mas não Itália. Só talvez mediterrânica. Pode pintar-se a aguarela. Pode pintar-se a óleo. Até a carvão. Mas não pode acabar-se. Os mistérios não se deslindam e os segredos não se revelam. Vêm para casa. Cheiram a uma especiaria estranha que pica, que é fresca e consegue ser doce ao mesmo tempo (nenhuma das que trouxemos do Oriente). Têm uma forma disforme, sempre selvagem e sempre cuidada. Parecem-se com um relógio sem ponteiros, um livro de regras a não cumprir. São um puzzle onde as peças não encaixam. Mesmo assim, é possível compreendê-los.
Eis as coordenadas: Bastia, Ajaccio, Pietracorbara, Erbalunga, Farinela, Bonifacio, Porto-Vecchio, Corte, Calvi, Thegime. São cidades, falésias, praias, vilas, lugares de passagem, sítios emblemáticos, pedaços de uma história que vem de 7000 a.C. As marcas da ocupação humana na ilha remontam à Pré-História, mas é mais significativo o legado neolítico e da Idade do Bronze. Por lá passaram fenícios, etruscos, gregos e romanos, mouros e sarracenos. A Córsega andou literalmente de mão em mão. Pertenceu ao reino de Pisa (1077/1284) e ao de Génova (1284/1768) antes de ser conquistada pelos franceses, invadida ainda pelos britânicos, que em 1796 a vendem finalmente à França sob os comandos de Napoleão Bonaparte, corso de naturalidade.
A vida conturbada da quarta ilha do Mediterrâneo por extensão moldou-lhe a personalidade. Rebelde e doce. Como a juventude. Fugidia e envolvente. Equilibrada no desequilíbrio dos dias longos. Esquecida e protegida, a ilha tem o pulsar de um orgulho intacto e a força de todas as feridas saradas, mas que o sal do mar continua a fazer arder. Ilha impossível de domar, pois é. Mas não de amar.
INFORMAÇÕES ÚTEIS
Como lá chegar
Pode voar até Ajaccio ou Bastia ou viajar até aos portos da Córsega de ferry a partir do Sul de França ou de Itália. Lembre-se que um carro é indispensável para qualquer estada na ilha. Pode levar o seu no ferry ou alugar um à chegada ao aeroporto.
Preços
Voos de Lisboa e Porto para Ajaccio e Bastia com escala em Paris ou Marselha entre os €300 e os €500. Viagens de ferry de Nice a Bastia, ida e volta, para duas pessoas, com carro, a partir de €350 (4h30 de viagem); de Bastia para Livorno (Itália) a partir de €345, também ida e volta.
Onde ficar
A oferta é variada. Há hotéis muito acessíveis e casas para alugar tanto nas principais cidades como junto às melhores praias com uma diária média de €100 para duas pessoas.
Publicado na Revista Única do Expresso de 14 de Agosto de 2010