A noite pede dança e frenesim. Nos lugares de celebração da festa, cada época tem os seus passos. Com maior ou menor jogo de cintura. Sempre orquestrados pelo movimento da batuta dos costumes. A noite, tal como hoje a conhecemos, é uma invenção do século XX.
Imaginemos isto: Lisboa alumiada à luz de candeeiros de petróleo. Ruas e ruelas obscuras e de contornos fantasmagóricos... Quem se atreveria a rasgar a cidade? Assim foi até ao final do XIX. É na era da eletricidade pública, quando as ruas do centro se enchem de fios elétricos e a noite se ilumina, que o espaço público é tomado de assalto pela ideia frenética e excitante do divertimento noturno. Tudo começou com o aparecimento dos primeiros night-clubs, entre as sonoridades do jazz e do charleston. E a vida moderna inaugurou-se assim.
OS LOUCOS ANOS 20 Maldita cocaína
Mal foi proclamada a República e já os velhos hábitos cheiram a mofo. A aristocracia está arruinada e a burguesia ao rubro. Os especuladores enchem-se de dinheiro fácil com o mercado negro que floresce no final da I Guerra Mundial e os novos-ricos fazem a sua entrada em cena. A instabilidade política que se vive nos primeiros anos do novo regime introduz um caos quotidiano que provoca o desejo da urgência no dia a dia. Ninguém sabe o que virá no amanhã. A liberalização de costumes propostos pela nova cartilha social causa espanto e consternação: o divórcio é instituído, as mulheres sobem as saias pelo joelho e podem guiar automóveis. Algumas tratam os homens por tu e até saem à noite... onde já se viu uma coisa assim?! No vocabulário desta recém-modernidade, a palavra de ordem é ser-se chique. Para o diletante, o prazer de viver sintoniza-se com progresso e a cultura, a mundanidade e o luxo. E o luxo pede champanhe e regabofe.
Ao todo, serão mais de 21 os clubes que surgiram em Lisboa, onde se experimentava cocaína, diz-se que introduzida por uma senhora francesa no Clube Montanha, e o absinto, e se dançava freneticamente fora dos espartilhos dos salões. Fizeram tal sucesso nos loucos anos 20 que deram enredos para folhetins da época, narrativas de romance e números de revista. Durante um tempo fugaz, a noite tornava-se uma indústria nova, que prometia um fôlego de cosmopolitismo para o século que se estreava.
DE 30 A MEADOS DE 60 Tudo isto é fado
Mas nas décadas que se seguem, a noite será ordeira. No início dos anos 30, rapidamente o jogo é proibido nas casas de diversão e os clubes, que entretanto se tinham começado a tornar lugares bas fonds e marginais, são encerrados. O Casino Estoril inaugura em 31 e passa a ser o único local a possuir a concessão do jogo. A política de Salazar exige brandos costumes e a cultura do regime exalta a pátria e o folclore nacional. Instalam-se as marchas populares, logo em 32, e promove-se a cultura das casas de fado. Outra grande diversão é a revista à portuguesa no Parque Mayer. Na classe alta, as noites do Estado Novo são elitistas e reservadas, pouco variando entre o casino, o teatro, a ópera, e a vida social dentro de casa. Para os mais mundanos haverá sempre os clubes mais discretos e com programas de acompanhantes. Em meados dos anos 40, no entusiasmo do pós-guerra, o eixo entre a Avenida da Liberdade e a Praça da Alegria vai-se transformando na zona dos cabarés: Fontória, Ritz Clube, Cristal, Moroco, Olímpia... No Maxime, o mais elegante e luxuoso, há espetáculos de variedades, striptease, e duas orquestras alternadas, a animar os bailes até às cinco da manhã.
Também as noites do Casino Estoril, onde param muitos estrangeiros, são animadas e cada vez mais arejadas. Na viragem para os anos 60, a alta sociedade lisboeta encontrava-se no bar do casino, o Wonderbar, com tradição boémia, ceias até tarde e noites dançantes, com a orquestra a tocar os sons franceses, o twist e muito chá-chá-chá. Subitamente, algo começa a mudar.
DE 65 À GERAÇÃO DE 70 Let´s dance!
As primeiras boîtes vão surgir precisamente na Linha, onde o ambiente de veraneio é mais propício à descontração. Os meninos das famílias de Cascais e do Estoril têm dinheiro, viajam, compram discos, querem dançar. Rapidamente, passam das festas de garagem para o Le Caveau, no Estoril, ou para o Caixote, em Cascais. Em 1965, é inaugurado o Van Gogo, com pista onde se dança o ié-ié e Barry White. Faz furor. De Lisboa vai-se a Cascais de propósito dançar ao seleto Van Gogo, onde muitos têm garrafa de whisky que lhes assegura o acesso. Só entra quem é conhecido ou faz parte do círculo do dono, o Manecas Mocelek, figura muito in daquele tempo. É o mesmo Manecas que, em 1968, toma conta do Ad Lib - no 7º andar de um prédio da Rua Barata Salgueiro, decorado por Pedro Leitão e onde se chega de elevador - e com outros sócios inaugura, em 1970, o Stones. Assim fica definido o roteiro da noite com a marca Mocelek: boîtes muito decoradas com o luxo moderno da época, muitos sofás e espaços de dança mais reduzidos, mas animadas pelos sons norte-americanos que prenunciam o disco sound, exclusivas e restritas ao circuito dos meninos bem.
Mas nem tudo se confinava aqui. A abertura política que se começa a fazer sentir nos primeiros anos da década de 70 rasga horizontes na juventude urbana, que se inquieta ao som dos Rolling Stones, Lou Reed, Peter Frampton e Roxy Music... também há o Reggae... e fuma-se erva.
Esta é a primeira geração que sai à noite em grupos mistos e circula de carro pela cidade. Fazem a ronda das discotecas: Primorosa de Alvalade, Browns, Beat Club... Mas o must é mesmo o 2001, inaugurado em 1972 no Autódromo do Estoril. Fica aberto até às quatro da madrugada e é onde toda a gente vem parar ao fim da noite. Talvez seja o primeiro lugar democrático na noite da capital, pois para entrar basta pagar à porta. O porteiro também não torce o nariz aos que não vêm acompanhados. Ao contrário das outras boîtes da moda, quem quer atacar a pista não precisa de par. É aqui, na dança, que todos os géneros se misturam. Este é o tempo do rock contra disco, mas também dos pré-punks e da new wave, dos atinados o dos prá-frentex, dos freaks contra os betos. A identidade maioritária dos grupos juvenis começa agora a definir-se na iconografia da moda, e os comportamentos moldam-se ao som do que se ouve... A liberdade já passou por aqui.
OS ANOS 80 Os pós-modernos
Cinco anos após o 25 de Abril, mal chegados à década em que Portugal vai entrar na CEE, e as coisas estão já neste pé: na zona do Príncipe Real há shows dos travestis Guida Scarlaty e Lídia Barloff e toda a gente quer ir espreitar. António Variações, com a sua forma estranha de cantar, anda por Lisboa em roupas extravagantes. Nas rádios, começa a ouvir-se música portuguesa das novas bandas rock, mas também Talking Heads e Joe Division. No Trump's, a primeira discoteca a misturar todos os públicos na animação assumidamente gay, inaugura em 1981. Fazem espetáculos e dança-se muito todos os géneros musicais até a noite acabar com o grito de "I Will Survive". Às quartas-feiras fazem-se romarias à zona de prostituição pesada, o Cais do Sodré, porque no Jamaica passa boa música. Em São Bento, na discoteca A Lontra, que encerra quase de manhã, dança-se aos pares: africanos chegados das colónias e malta de esquerda que adora a música africana. Todos estes lugares, cheios de novidade, começam a ser misturados por gente de vários moldes sociais e políticos que cultiva a diferença.
Quando, em 1982, o empresário da noite Manuel Reis invade uma das zonas mais decadentes do centro de Lisboa, e abre a porta do Frágil, com duas porteiras espampanantemente produzidas, o Bairro Alto, até então território boémio quase exclusivo de prostitutas, jornalistas, e alunos de artes que ocupam as mesas das tascas baratas à hora de jantar, não voltará a ser o mesmo. O Frágil é um espaço único na Lisboa daquele tempo e marca a diferença: um bar onde se dança, o primeiro a ter DJ residentes, e se conversa de copo na mão e com pouquíssimos lugares para sentar. Por isso circula-se. Porque a ideia é mistura. E mistura: artistas e designers, músicos e advogados, arquitetos e fotógrafos, mecenas e políticos, heteros e gays, pessoas públicas e pessoas anónimas. Este é o lugar de vanguarda cosmopolita, elitista e muito in que gera o movimento da pós-modernidade portuguesa. Nas festas de aniversário, com convites enviados para casa surpreendentes, e onde não se paga o consumo, abrem a porta para a rua. Pela primeira vez, uma discoteca invade o espaço público. Naquela altura ninguém se atrevia. Na cauda do nº 126 da Rua da Atalaia seguem-se outros bares, restaurantes, lojas. Com o Frágil, o Bairro Alto torna-se a zona da movida lisboeta, o mapa por onde passarão todas as tribos urbanas. Ainda no final dos anos 80, com a abertura da discoteca Plateau, depois o Kremlin, e logo de seguida o Alcântara-Mar, um novo eixo desenha-se para as noites de dança, com as batidas house e techno que vão determinar o som da década que se segue e onde se dança em grandes espaços. A partir daqui, a noite será verdadeiramente anónima e democrática.
90 ATÉ HOJE Rumo ao século XXI
A década de 90 consolida o boom da noite que se alastra até ao século XXI. Este é o tempo dos templos da dança, das drogas recreativas, da cocaína e do ecstasy, das raves, e dos after-hours. Em que as noites invadem os dias. O tempo de todas as tribos e de todas as músicas da cena global e cosmopolita e em que a oferta é cada vez maior e comporta todas as identidades. A indústria da noite pôs toda a gente na rua. De copo na mão. Mas a ideia da dança como festa coletiva e vontade de pura liberdade do movimento do corpo também se perdeu nesta diversidade. E a noite continuará sempre por (re)inventar.
PARA ESTE ARTIGO, A JORNALISTA CONSULTOU ANÍSIO FRANCO, DAVID FERREIRA, DIOGO SARAIVA E SOUSA, JOÃO BRAGA, JÚLIA LEITÃO DE BARROS
Publicado na Revista Única de 18 de Dezembro de 2010