Sociedade

Moçambicana Paulina Chiziane vencedora do Prémio Camões: “Conquistei o mundo de pés descalços, aprendi a escrever debaixo de uma árvore”

Escritora de 66 anos, que atualmente trabalha e vive na Zambézia, foi eleita por unanimidade do júri. Considera que o prémio pode ser "um alento novo" e um símbolo que de que a sua caminhada "valeu a pena"

Paulina Chiziane dá relevo nas suas obras aos problemas das mulheres africanas
ANTÓNIO SILVA

A escritora moçambicana Paulina Chiziane, 66 anos, vencedora do Prémio Camões 2021, elege a luta pela emancipação da mulher moçambicana como um dos fios condutores da sua obra.

O júri do prémio elegeu Paulina Chiziane por unanimidade, destacando o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes. além da importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher africana. "Está traduzida em muitos países, e é hoje uma das vozes da ficção africana mais conhecidas internacionalmente, tendo já recebido vários prémios e condecorações", conclui-se na mensagem.

Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, na província de Gaza a sul de Moçambique, em 1955. Estudou Linguística em Maputo. Atualmente, vive e trabalha na Zambézia.

"Venho de longe, conquistei o mundo de pés descalços. Quero encorajar o meu povo, as mulheres da minha terra: por muito difícil que as condições sejam, caminhem descalços e vençam", disse em tom emocionado quando em 2014 recebeu o grau de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique, atribuído pelo então presidente português, Cavaco Silva.

O papel do feminino em Moçambique é algo de que pode falar na primeira pessoa: foi a primeira mulher a publicar um romance no país, em 1990, com "Balada de amor ao vento".

"Quando eu comecei a escrever, ninguém acreditava naquilo que eu fazia. Porque eram escritos de mulher" e em muitas ocasiões do quotidiano, tudo não passa de uma questão de género - lembrou a escritora em entrevista à agência Lusa, após saber que tinha sido distinguida.

Falante das línguas chope e ronga, aprendeu português na escola de uma missão católica e começou a estudar linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, sem concluir o curso.

Apesar das sucessivas distinções, diz-se surpreendida com o Prémio Camões: "Sempre achei que o meu português não merecia tão alto patamar. Estou emocionada".

A escritora estreou-se a publicar contos na imprensa moçambicana do início dos anos de 1980, no jornal Domingo e na revista Tempo, e a temática social esteve sempre presente, assim como as tradições num país em busca pela paz.

"Sou uma mulher que veio do chão"

No seu primeiro romance, "Balada de amor ao vento", explora a poligamia, as tensões culturais, políticas e religiosas numa realidade machista que trava a iniciativa da mulher, expondo a contradição com a modernidade.

Seguiram-se "Ventos do Apocalipse" (1993), "O Sétimo Juramento" (2000) e "Niketche: Uma História de Poligamia" (2002), com o qual ganhou o primeiro Prémio José Craveirinha de Literatura instituído pela Associação Escritores Moçambicanos (AEMO), em 2003, juntamente com Mia Couto.

No mesmo ano, "Niketche" foi adaptado para teatro e subiu aos palcos em Portugal, coproduzido pelo coletivo moçambicano Hala ni Hala, Cena Lusófona e pelo Centro Dramático de Évora (Cendrev).

Os conflitos entre tradição e modernidade e a (falta de) emancipação da mulher estão desta vez em foco com as aventuras e desventuras da "esposa legítima" de um funcionário superior que descobre que o marido tem mais quatro mulheres.

Apesar de, às vezes, ser "tratada como uma rainha", especialmente "em Portugal", pelos apreciadores das suas obras, Paulina Chiziane diz saber que é "uma mulher que veio do chão". Assim se descreveu em 2010, quando foi homenageada pela Casa de Moçambique em Portugal.

"O meu pai não tinha caderno para me oferecer, aprendi a escrever debaixo de uma árvore", lembrou.

Da sua obra fazem ainda parte "O Alegre Canto da Perdiz" (2008), "As Andorinhas" (2009), "Na mão de Deus" e "Por Quem Vibram os Tambores do Além" (2013), "Ngoma Yethu: O Curandeiro e o Novo Testamento" (2015), "O Canto dos Escravos" (2017), "O Curandeiro e o Novo Testamento" (2018).

Este ano lançou em Maputo, em conjunto com Dionísio Bahule, o livro "A voz do Cárcere", depois de ambos entrarem nas prisões e ouvirem os reclusos - ela a escutar as mulheres, ele, os homens.

A pandemia covid-19 a manteve-a muito tempo em casa, quase desligada do mundo. Para a escritora, o Prémio Camões 2021 pode ser "um alento novo", um símbolo que de que a sua caminhada "valeu a pena" e de que "é preciso continuar a lutar".

"A mulher tem uma alma grande e tem uma grande mensagem para dar ao mundo. Este prémio serve para despertar as mulheres e fazê-las sentir o poder que têm por dentro", afirmou a autora.

Prémio atribuído pela primeira vez a Miguel Torga

O júri da 33.ª edição do Prémio Camões foi constituído pelos professores universitários Ana Martinho e Carlos Mendes de Sousa (Portugal), pelo escritor e investigador Jorge Alves de Lima e pelo professor universitário Raul César Fernandes (Brasil), e pelos escritores Tony Tcheka (Guiné-Bissau) e Teresa Manjate (Moçambique).

No Brasil, está editada apenas a obra "Niketche: Uma História de Poligamia".

O Prémio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído por Portugal e pelo Brasil, com o objetivo de distinguir um autor "cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento do património literário e cultural da língua comum".

Segundo o texto do protocolo constituinte, assinado em Brasília, em 22 de junho de 1988, e publicado em novembro do mesmo ano, o prémio consagra anualmente "um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum".

Foi atribuído pela primeira vez, em 1989, ao escritor Miguel Torga. Em 2019, o prémio distinguiu o músico e escritor brasileiro Chico Buarque, autor de "Leite Derramado" e "Budapeste", entre outras obras; em 2020, o professor e ensaísta português Vitor Aguiar e Silva.

Portugal e Brasil lideram a lista de distinguidos com o Prémio Camões, com 13 premiados cada, seguindo-se Moçambique, agora com três laureados, Cabo Verde, com dois, mais um autor angolano e outro luso-angolano.

A história do galardão conta apenas com uma recusa, exatamente a do luso-angolano Luandino Vieira, em 2006