Quando olha pela janela de sua casa, Alaa Al-Youssef, sírio de 28 anos que vive na cidade de Idlib com a mulher e os seus dois filhos, vê edifícios destruídos, é assim que está o edifício à frente de sua casa, “as pessoas que viviam ali nem se atreveram a voltar depois dos ataques aéreos para ver como tinha ficado a sua casa”. Foram-se embora, simplesmente. E ele não pensa abandonar a província com o mesmo nome da cidade, tal como já o fizeram quase um milhão de pessoas desde dezembro do ano passado, depois de o regime sírio ter reforçado as operações pela reconquista da região? Nem por isso, porque “as zonas junto à fronteira com a Turquia estão cheias de pessoas, não há espaço”, nem “condições básicas” para viver nos campos ali montados. A sua esperança é de que as tréguas prometidas sejam cumpridas.
Mas há mais além da destruição para que abre a janela de sua casa, diz. “A situação aqui é muito má, no geral, e piorou nos últimos tempos. Sentimo-nos muito ansiosos, há muita pressão desde que o regime começou a atacar mais e a lançar mais bombas. Não sabemos o que vai acontecer.” O que mais o preocupa, porém, é ficar doente, ou a sua mulher ou os seus filhos, por falta de “cuidados médicos”. “A comida é pouca, é difícil encontrá-la, mas a minha preocupação é mesmo a saúde. Vários hospitais foram recentement, alvo de ataques aéreos e não estão a funcionar”, diz o sírio, que trabalha num destes centros de apoio médico que vão escasseando pela cidade.
É Khaled Khatib, voluntário na organização não-governamental White Helmets, ou Capacetes Brancos, quem traduz a conversa ao telefone com o Expresso. O fotógrafo e realizador (ajudou a filmar o documentário “The White Helmets”, que venceu o óscar de melhor documentário de curta-metragem em 2017) chegou a Idlib esta terça-feira de manhã, vindo da cidade de Afrin, a cerca de 80 quilómetros, para acompanhar o trabalho dos seus colegas da organização, em concreto os voluntários que resgatam pessoas de covas abertas pelas bombas, como Mouna, que se juntou à organização em 2017 e vive desde 2018 na cidade de Ariha, na província de Idlib. É uma deslocada, assim se chama àqueles que foram obrigados a sair das suas casas nas suas cidades por causa da guerra que dura há quase nove anos no país, e são milhares os que o são.
O mais recente exemplo disso é Idlib, província no noroeste da Síria onde oposição e grupos radicais armados ainda estorvam o regime sírio e as suas aspirações de reconquista absoluta do país e as da Rússia, que pretende manter alguma influência na região, e por isso tem sido bombardeada desde abril de 2019 e mais ainda desde dezembro. De acordo com as Nações Unidas, cerca de 400 civis morreram desde então e quase um milhão de pessoas abandonaram as suas casas, umas saindo em direção à fronteira com a Turquia, onde já quase só se circula entre tendas caminhando em fila, outras para zonas rurais no oeste da província de Alepo. Destas, cerca de 80% são mulheres e crianças. Trata-se do maior êxodo de pessoas desde o início da guerra na Síria, mas trata-se ainda de outra coisa, da “pior história de horror do século XXI”, nas palavras de Mark Lowcock, vice-secretário das Nações Unidas para os assuntos humanitários.
Quase um milhão de pessoas de Idlib encontra-se deslocada
A cidade de Afrin, na província de Alepo, também tem sido destino para muitos, dizia Khaled Khatib ao Expresso na segunda-feira, quando ainda ali se encontrava, na última paragem de uma viagem iniciada na Turquia, onde vive. “Aqui a situação não está tão má, porque, tratando-se de uma área controlada pelos rebeldes e pelos turcos, o regime não ataca. Há vida aqui, as pessoas podem sair, trabalhar, sentem-se seguras, é um lugar para elas.” A comparação é feita precisamente em relação a Idlib, onde se estima que ainda vivam cerca de três milhões de pessoas, muitas delas fugidas de outras regiões sírias devastadas pela guerra — Homs, onde começou a revolução, em 2011, a região leste de Alepo, que esteve cercada durante vários anos pelas forças do regime, e Goutha, que esteve cercada a seguir, já depois de ter sido atacada com armas químicas pelo regime, em 2013. Um deslocado é-o um bocadinho menos se já não se lembrar de onde nasceu? Alaa Al-Youssef, o sírio de 28 anos com quem falámos, já viveu em quatro cidades diferentes desde que foi obrigado a fugir de Khan Sheikhan, no sul de Idlib.
Lê-se várias vezes que estão agora “encurraladas” em Idlib e a descrição de Khaled Khatib só suscita essa palavra. “Algumas pessoas decidiram ficar, mas apenas porque não tinham outra alternativa. Arrendar uma casa na zona rural de Alepo tornou-se impossível e, portanto, a única opção seriam os campos, mas mesmo os campos estão cheios, conseguir lugar numa das tendas ali montadas tornou-se quase um sonho e ninguém quer dormir debaixo de uma oliveira”, dizia Khaled Khatib, falando também das condições em que se vive junto à fronteira. “Muitas das pessoas chegam ali sem nada porque fugiram de sítios que, horas antes, foram atacados pelo regime e os aviões russos e não tiveram tempo para preparar a saída. Neste momento precisam de coisas básicas, como roupas e cobertores.” Os campos são “sítios horríveis”, dizia ainda Khaled Khatib, falando da “falta de privacidade das mulheres e das crianças”, e da falta de trabalho e ocupação delas e das restantes pessoas que ali estão. “Tanta gente junta sem nada para fazer, sem saber o que fazer. A situação é mesmo devastadora.” Apesar disso, os campos são dos poucos sítios onde as pessoas se sentem seguras”, porque “com a presença dos turcos e a Turquia ali tão perto, o regime não se atreve a atacar”.
“Tenho a certeza de que a violência e os ataques a civis vão voltar”
A ida de Khaled Khatib a Idlib acontece num contexto diferente das anteriores visitas. Na semana passada, e já depois da ameaça, por parte da Turquia, de abertura de fronteiras para permitir a saída dos refugiados em direção aos países da União Europeia, depois de 34 soldados turcos terem sido mortos num ataque aéreo do regime sírio, Bashar al-Assad, presidente sírio, e Recep Tayyip Erdoğan, o seu homólogo turco, assinaram um acordo de cessar-fogo. Este determina o fim dos bombardeamentos em Idlib, assim como a abertura de um corredor de segurança de seis quilómetros ao longo de uma importante estrada que liga o oeste à região este da província, e patrulhas conjuntas da Rússia e da Turquia.
Mas nem por isso Khaled Khatib se dizia mais sossegado. “É verdade que nos últimos dois dias não houve bombardeamentos, mas não sabemos como será amanhã e depois de amanhã e no dia seguinte”, dizia também. “É sempre assim. Eles assinam acordos de cessar-fogo mas depois os ataques aéreos continuam. Está sempre a acontecer, não espero que desta vez seja diferente. Aliás, tenho a certeza de que a violência e os ataques a civis vão voltar.” Horas antes das tréguas, contava ainda o fotógrafo e realizador, houve um ataque e “morreram 16 pessoas, incluindo uma família inteira que estava a viver escondida num aviário”.