Sociedade

Nova lei orgânica “é uma machadada” no ICNF, dizem ambientalistas

Sete organizações não governamentais do ambiente pedem ao Governo para voltar atrás e devolver ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) as “competências para garantir uma efetiva conservação da natureza terrestre e marinha em Portugal”. A secretária de Estado do Ordenamento do Território considera as críticas “alarmistas”

A nova lei-orgânica do ICNF “é uma má lei, porque dá uma machadada nas competências do ICNF”, garante Ângela Morgado, presidente da Associação Natureza Portugal/World Wildlife Found (ANF/WWF). Na mesma linha seguem as críticas da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). “O ICNF cada vez tem mais de ‘F’ [floresta] e menos de ‘CN’ [conservação da natureza]” afirma Domingos Leitão, sublinhando que “é positiva a aposta na prevenção estrutural e gestão dos fogos rurais, mas não o é colocar em causa atribuições fundamentais para garantir a efetiva conservação da natureza em Portugal”.

Estas duas organizações não governamentais de ambiente lideram um grupo de sete (onde se incluem também a APECE, FAPAS, LPN, QUERCUS e SCIAENA) nas críticas à nova lei-orgânica do ICNF, publicada a 29 de março. Os receios levam os ambientalistas a apelar ao Governo (que aprovou a lei) e ao Presidente da República (que a promulgou) que a “revejam”, e aos partidos com assento na Assembleia da República que a apreciem.

Para os ambientalistas, a legislação agora em vigor “representa um entrave à missão do ICNF e um enfraquecimento da conservação da natureza em Portugal”. Temem a chamada descentralização de competências do ICNF para as autarquias e outros atores locais, que consideram “preocupante e perigoso se não for acompanhado de uma monitorização efetiva e de planeamento estratégico adequado”; e receiam a passagem de competências de gestão das áreas marinhas protegidas e da Rede Natura 2000 da alçada do ICNF para a da Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM) e para o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA)”, tutelados pelo Ministério do Mar, e que gerem as pescas, a mineração em mar profundo ou as licenças para dragagens ou exploração de hidrocarbonetos.

“Não são claras as responsabilidades de cada uma destas entidades no que respeita aos seus objetivos de conservação das áreas marinhas protegidas, já que a DGRM e o IPMA não têm na sua missão e orgânica, objetivos e competências técnicas para a conservação da natureza”, afirma Ângela Morgado, da ANP/WWF. “A conservação do meio marinho deve ser competência da autoridade nacional para a conservação da natureza, que é o ICNF, e só desta forma pode ser assegurado o cumprimento das diretivas europeias para as aves e para os habitats”, reforça Domingos Leitão, da SPEA.

O biólogo lembra que “foi a DGRM que travou a aprovação de planos de gestão de dois sítios de importância comunitária (SIC) na costa de Setúbal que deviam integrar a rede ecológica europeia”. Em causa estão os SIC para proteção de espécies como o boto e os roazes, propostos por uma equipa coordenada pela Universidade de Aveiro para a Costa de Setúbal e o Estuário do Sado, que terão sido bloqueados devido às projetadas dragagens do Sado, defendidas pelo Ministério do Mar.

Secretária de Estado nega “machadada”

A secretária de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, Célia Ramos, diz que “o sítio do Sado vai avançar, mas foram estabelecidas prioridades e, por isso, avançaram primeiro os sítios da costa de Maceda-Vieira e o alargamento do sítio do Sudoeste Alentejano”. A governante nega que estejam a ser retiradas competências ao ICNF e diz que se sente “chocada com este alarmismo” das associações ambientalistas. Segundo ela, o objetivo é “voltar a pôr as áreas protegidas no mapa” e, considera, “isso só se faz investindo em projetos de conservação ativa e apostando na cogestão com outros sectores”.

Quanto às áreas marinhas protegidas, Célia Ramos garante que “o ICNF continua a ter competências nas áreas classificadas que sejam contínuas à linha de costa" e que a nova lei vem dizer que “tem de haver articulação com a DGRM”. A secretária de Estado defende que "as áreas marinhas protegidas localizadas para além das 12 milhas da costa são uma responsabilidade do Ministério do Mar, com certeza” e que isso está na lei desde 2015, quando foi estabelecido o que chama de “‘Tratado de Tordesilhas’ em matéria de gestão de áreas marinhas protegidas”, que alterou o Regime Jurídico da Conservação da Natureza e definiu a articulação entre as entidades tuteladas pelo Ministério do Ambiente e as tuteladas pelo Ministério do Mar. Ao ICNF compete gerir áreas marinhas protegidas no mar territorial e à DGRM gerir as localizadas para lá das 12 milhas náuticas, sendo que, enquanto a DGRM tem de ouvir o ICNF sobre a gestão das áreas marinhas protegidas que tutela, “o mesmo não sucede quando a gestão ocorre na área da competência do ICNF”.

Criadas para proteger ecossistemas marinhos, habitats e espécies e assim recuperar ou repor recursos importantes em termos ambientais, sociais e económicos, as áreas marinhas protegidas ocupam atualmente 6,4% da área sob potencial jurisdição nacional e deverão ocupar 14% em 2020. Porém, a grande maioria das 71 áreas marinhas protegidas (AMP) existentes em Portugal são-no “apenas no papel”, segundo um diagnóstico elaborado em 2018 pela ANF/WWF, em parceria com a Fundação Oceano Azul e o Oceanário de Lisboa.

Os especialistas constataram que 84% destas áreas apenas têm proteção parcial, “o que não impede atividades de elevado impacto negativo”, como a pesca intensiva ou atividades extrativas de minerais, petróleo ou outros recursos e que muitas são de grande dimensão e localizam-se em áreas remotas, “o que dificulta uma fiscalização eficiente”. De todo o mar territorial português apenas 0,05% está sob proteção total e efetiva.