Portugal não precisa de mais remendos, precisa de mudar o modelo, a forma como decide, financia, avalia e presta contas. Em vez de reabrir querelas sobre extinções ou fusões, partamos de um consenso simples: preservar o que funciona, corrigir o que falha e acrescentar os instrumentos que faltam. O que se segue é um plano de execução para cinco anos, inspirado no que a Europa e os Estados Unidos já fazem bem, para que a ciência aconteça no laboratório, no hospital e na empresa, e não apenas no papel.
No que respeita ao custo da incerteza orçamental, se a conversa pública se fixa no montante global, quem está no terreno sabe que o que separa êxito de frustração é a cadência, aprovar e pagar a tempo. Quando decisões, contratos e verbas se arrastam meses, os projetos perdem a janela de oportunidade, os fornecedores cortam crédito e as equipas substituem ciência por burocracia.
Uma disciplina de prazos, decisões em 60 dias, contratos imediatos e execução regular, com juros de mora automáticos quando o Estado falha, vale mais do que um organigrama novo. E vale, sobretudo, mais do que a falsa ‘gestão’ que economiza a ciência como um centro de custos. A boa gestão serve a descoberta, não a reduz a um cálculo de retorno imediato.
Não é que a ciência seja a antítese da gestão e da economia, é que joga com regras diferentes. Onde a gestão procura previsibilidade e KPIs (indicadores chave de desempenho) imediatos, a investigação trabalha com incerteza radical, valor esperado e retornos assimétricos que podem demorar anos. É por isso que precisamos de tesouraria que paga a horas e de compras que funcionam, instrumentos de gestão, sem impor à descoberta métricas que a empobrecem e desvirtuam. A boa gestão serve a ciência, não a reduz a um business case.
Sem relógios fiáveis, também o financiamento de base nunca paga o que a ciência realmente custa. Habituámo-nos a financiar projetos sem cobrir custos indiretos reais e o resultado está à vista. Instituições cronicamente suborçamentadas, investigadores a adiantar despesas, equipamentos parados por falta de manutenção. Contratos-programa plurianuais às unidades de investigação e um orçamento de estado com orçamento real de investigação para as Universidades, com full costing e uma linha previsível para operação e manutenção leve, não são um luxo, são o mínimo para estabilizar a produtividade, que tanto se pede.
Daí que as compras públicas tenham de tratar reagentes como reagentes, não como mobiliário. O regime pensado para cadeiras e tijolo não serve para enzimas, anticorpos ou sequenciação, bens perecíveis, sensíveis a prazos e a variações de lote. Um regime específico de I&D, com catálogos nacionais, prazos de referência, acordos-quadro e instrumentos pré-comerciais, reduz tempo morto e litigância e, sobretudo, permite comprar melhor e a tempo.
Mas a infraestrutura não é só orçamento e equipamentos. É, antes de mais, pessoas. Microscopia avançada, biotérios, salas limpas, gestão de dados. Nada disto funciona sem carreiras de técnicos e gestores com grelhas adequadas e mobilidade entre instituições. Tratar estes profissionais como auxiliares pagos, muitas vezes demasiadas vezes, a recibos verdes, é condenar máquinas de milhões a horários de caridade. Um programa nacional de instalações partilhadas, com financiamento plurianual e acesso por marcação a nível nacional, evita duplicações, eleva padrões e poupa recursos.
A mesma lógica vale para o talento científico e clínico. Atrair e reter pessoas é arquitetura institucional, não um catálogo. Carreiras com avaliação para efetivação (6+2 anos), mobilidade real sem perda de financiamento e avaliações externas calibradas aproximam-nos das boas práticas. Na medicina académica, o médico-investigador com tempo protegido liga bancada e doente e, num país que quer regressos e chegadas, um visto Ciência+ que resolva graus, cônjuges e previsibilidade fiscal pesa mais do que qualquer campanha.
E, quando a investigação quer chegar à sociedade, a clareza contratual decide mais do que o capital. Sem modelos-tipo de propriedade intelectual, prazos máximos de negociação e tetos razoáveis de participação institucional, a transferência de tecnologia transforma-se numa maratona de incerteza. A clareza protege inventores, instituições e investidores e pede ainda um degrau financeiro certo, um fundo para as primeiras 18-24 semanas pós-licenciamento, registos, equipa-núcleo, protótipo, primeiros clientes, para fechar o fosso entre descoberta e prova de produto/mercado.
Essa clareza melhora ainda quando o incentivo fiscal alinha interesse público e privado. Um crédito fiscal em copromoção (empresa + academia), com componente base e incremental, e majorações para PME e coesão territorial, pode multiplicar investimento. A contrapartida justa é a ciência aberta proporcional ao benefício público, com pré-registo, quando aplicável, dados e código depositados, acesso aberto sempre que não colida com proteção legítima.
Nada disto escala sem confiança operacional nos dados. Saúde, energia e oceano mostram-no, sem entidades fiduciárias de dados e cofres com acesso federado, auditoria e gestão de risco, ficamos entre o “não pode” jurídico e o “talvez” administrativo. O salto exige governação clara, normas técnicas e um benefício explícito para o cidadão. É menos retórica e mais engenharia institucional.
E há domínios onde faz sentido pagar por resultados. Em vez de pulverizar apoios, contratos de impacto científico alinham financiamento com indicadores verificáveis, diagnósticos mais precoces, poupança energética em campus, adoção de protocolos clínicos que melhoram a vida real. Funcionam quando o que se mede é claro e relevante, com metas, auditoria externa e contas-garantia. Não substituem a investigação exploratória, complementam-na onde a tradução é possível.
Tudo isto obriga a ter a luz acesa sobre a execução, sem observação independente, discutimos perceções. Um Observatório com mandato parlamentar, dados em tempo real e relatórios trimestrais, o equivalente, na ciência, a um “Conselho de Finanças Públicas”, dá linguagem comum, disciplina e escrutínio. Transparência não é adereço, é o que transforma promessas em trajetória.
Este Plano Marshall não é um manifesto, é um guião operativo para transformar a ciência portuguesa em cinco anos, com relógios, métricas e consequências. Modernizar não é apagar, é pôr a tesouraria a funcionar, as compras a entregar, os dados a servir e as pessoas a ficar.
Falta-nos um contrato operativo com a ciência, um plano que trate a tesouraria como infraestrutura, a técnica como carreira, os dados como bem fiduciário e a aplicação como contrato. Se o fizermos, cinco anos chegam para sairmos da gestão de escassez e entrarmos no campeonato de quem constrói conhecimento com propósito.
A escolha é política, o método é técnico e o tempo de decidir é agora. Seremos sempre avaliados por resultados, não por intenções, com calendário público, metas anuais e auditoria independente.
Plano Marshall para a Ciência: como Portugal pode construir em 5 anos o que andou 25 a adiar
Modernizar não é apagar, é pôr a tesouraria a funcionar, as compras a entregar, os dados a servir e as pessoas a ficar