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Filha da Esgana Cão e da Malvasia Fina, não é fácil a vida da Cercial: uma casta desafiante no mundo dos vinhos

Parece complicado? Mas é evidente. Viagem que vai da Madeira ao Douro

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O branco bairradino que hoje sugiro é feito com Cercial. Trata-se de uma casta algo controversa e que gera muita discussão, quer sobre a origem quer sobre o seu valor intrínseco. É apenas mais uma de muitas outras castas que existem entre nós e que têm tido uma vida difícil. A dificuldade da sua caracterização/identificação tem vindo a ser amenizada fruto dos avanços da genética que consegue dizer agora quem foi o pai e a mãe de cada casta. Este trabalho veio pôr fim a um “mar confuso” em que navegavam as castas nacionais, com um nome diferente em cada terra onde apareciam, chegando a ter dezenas de sinónimos. João Afonso, no seu tratado sobre castas de vinho, aponta para que a Cercial resulte de um cruzamento entre a Esgana Cão (a Sercial da Madeira) e a Malvasia Fina. Na ilha da Madeira vingou o nome Sercial, que é hoje uma das castas nobres da região. No continente esta casta está presente sobretudo em Bucelas, onde tem o nome de Esgana Cão (tente traduzir para inglês, por exemplo, e confira a dificuldade que por vezes temos em falar com estrangeiros sobre as nossas castas...) e onde faz companhia à Arinto, variedade que ali nasceu e dali partiu para o resto do país. No mesmo livro fala-se na casta Sercialinho, uma variedade criada em 1954 por Leão Ferreira de Almeida, em Alcobaça, resultado do cruzamento de Alvarinho e Vital ou, como sugerem estudos mais recentes, do cruzamento entre Uva Cão e Vital. Com este nome (Sercialinho) é casta hoje usada em vinhos de Luís Pato e Sogrape. Confuso? Pois claro! Acresce ainda que no Dão existe uma outra casta com nome parecido: Cerceal-Branco (não esquecer o hífen...) e que também aparece ocasionalmente no Douro. Curiosamente, todas estas variedades têm entre si um fator comum: a elevada acidez, que é, como se sabe, um elemento de grande apreço por parte de produtores e enólogos. A alta acidez potencia a vida em garrafa e fornece a natural frescura aos vinhos. Em tempos de alterações climáticas e aumento de temperatura, as castas mais ácidas ganham novo e merecido espaço. A Cercial é casta que, além de controversa, é também enigmática: muito longe de ser “explosiva” em termos aromáticos, é uma variedade que se queda num registo mais neutro, que pode precisar de um apoio na vinificação. Falo sobretudo na vinificação em barrica e a prática sugere que é melhor que essa barrica seja já usada e não nova, para que os aromas da madeira não marquem muito o vinho. Se não se usarem leveduras selecionadas, é muito provável que no vinho se acentue aquele lado menos óbvio e menos direto que falei. Isso para uns será um fator negativo a ter em conta (diz-se que o consumidor só gosta mesmo é de frutinha direta nos vinhos), mas para outros é um aspeto a ter em grande consideração. Porquê? Porque as castas menos exuberantes, cujo bom exemplo é a francesa Chardonnay, são aquelas que depois melhor expressam o local de onde vieram, o tal terroir tão falado nos contrarrótulos.