Não posso dizer que o título desta entrevista tenha sido conquistado sem esforço. Do outro lado do oceano, em Nova Iorque, à distância de cinco horas, Patti Smith dava sinal de que queria regressar à sua vida, à sua escrita. Pedi-lhe uma última pergunta, estendendo assim o prazo acordado para a entrevista. Havia lido algures que, na Índia, alguém tinha dito a Stephan Crasneanscki (Soundwalk Collective), parceiro dos projetos em que Patti Smith tem investido nos últimos anos, que, na hora da cremação, um corpo que tenha vivido bem queima mais depressa, ou seja, exige menos lenha, do que um corpo que tenha vivido mal. Mas do outro lado da linha, e na minha pressa de fazer a questão, Patti Smith entendeu-a de um modo totalmente diferente, também, pensei depois, por pertencer a esse meio artístico no qual tantas pessoas viveram intensa e radicalmente, morrendo precocemente. Gente próxima e muito querida que a artista foi penosamente perdendo, como Robert Mapplethorpe, seu primeiro companheiro, a quem dedicou o livro de memórias “Apenas Miúdos” (Quetzal), como o seu marido, Fred “Sonic” Smith, guitarrista dos MC5, de quem teve filhos, como o seu irmão, elemento da sua banda… Não tive tempo para me explicar, mas o equívoco resultou numa resposta igualmente interessante, na qual Patti Smith afirmou a recusa de um caminho autodestrutivo, garante da sua longevidade feliz, embora por vezes penosa e solitária. Não ser uma chama breve, como diz, e que no original, em inglês, foi dito desta forma: “I’m not a brief candle”; levou-me à expressão shakespeariana “Out, out, brief candle”. Frase que aparece a meio de um solilóquio de Macbeth, no qual ele percebe que a ambição de ocupar o trono não vale nada perante a brevidade da vida. Ora, Patti Smith não partilha dessa desilusão, nunca quis o trono ou a fama, como diz nesta entrevista. Ausentou-se da vida pública quando o amor a chamou, recusou convites quando estes não lhes serviram. Procurou o sentido da vida através da atividade poética, e fez dela forma de perscrutar o destino do ser humano e a sua possibilidade de transcendência. Está disponível para continuar, aos 77 anos, sendo fiel à jovem sem sofisticação que partiu para Nova Iorque, deixando a América rural, à procura de emprego. Olhando retrospetivamente, e sem amplificar o som do rock and roll, a procura de fazer jus à poesia está nos seus primeiros escritos, dos anos 70 — e que Herberto Helder tanto acarinhou. Entre eles contam-se alguns poemas já dedicados a Rimbaud — o “único namorado” que ela teve na adolescência —, alguns já imbuídos do espírito de missão que foi buscar a Joana D’ Arc, alguns já comprometidos com a arte enquanto forma de expressão que prolonga uma oração que não se confina a qualquer tipo de religião ou política, que não quer refletir o mundo exterior, como Andy Warhol fez, e Patti Smith tanto criticou, mas transformá-lo, a partir do próprio ser. “Evidence”, exposição e instalação que apresenta no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (23 de março a 15 de setembro), mostrada, pela primeira vez, em 2022, em Paris, no Centro Pompidou, e “Correspondences”, a performance integrada no Festival Belém Soundcheck, no CCB (dia 23) e que levará também ao Theatro Circo, Braga (dia 24) é, pois, o prolongamento dessa rica e intensa colaboração com os Soundwalk Collective, que começou por mero acaso num encontro com Stephan Crasneanscki, durante uma viagem de avião. “Evidence” é composta por três trabalhos inspirados no desejo de transcendência de Antonin Artaud, quando parte para o México ao encontro dos Tarahumara; de Rimbaud, na sua deriva pela Abissínia, ou de René Daumal, na Índia, nos Himalaias, à procura da porta para a montanha invisível, e não destoa de um primeiro momento de um caminho em que Patti Smith nunca se distraiu do fim mais alto, nem do lugar dos seus pés — para parafrasear Daumal, que diz: “Mantém o teu olho fixo na via do cume, mas não te esqueças de olhar para os teus pés” (“O Monte Análogo”) —,enquanto “Correspondences” é “o passo que depende do primeiro”. No verão, passará de novo por Lisboa, “cidade ideal para nos deixarmos levar pelo tempo” (“O Ano do Macaco”, Quetzal), a caminho de Oeiras, onde fará um concerto com o seu quarteto (7 de julho, Festival Jardins do Marquês).
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Entrevista a Patti Smith no regresso a Portugal: “A vida tem sido trágica, mas é bom estar viva. Não sou uma chama breve”
Patti Smith: a escritora, a poetisa, a performer, a não música, a artista “além género”, a feminista sem feminismo, a mãe de família e a crente, em conversa, a poucos dias de chegar a Portugal para espetáculos em Lisboa e Braga e a inauguração de uma exposição no CCB