Houve um tempo em que o Império do Meio era governado por um imperador invisível. Em Pequim, toda uma cidade foi construída para que o senhor absoluto desse vasto Império vivesse resguardado de olhares indiscretos, rodeado pela sua corte de conselheiros, oficiais, eunucos e concubinas. A distância era, em si mesma, um instrumento de poder. Hoje, a moda diz que o instrumento que dá poder não é a distância, nem a invisivilidade, mas a proximidade e o mediatismo. Dificilmente o contraste seria maior entre os tempos dos velhos imperadores da China e o tempo atual do Presidente da República Portuguesa.
Este domingo, o Presidente que todo um país conhece como "o Marcelo" - assim, com o artigo definido que mostra tu-cá-tu-lá e o nome próprio que revela familiaridade - visitou a cidade dos imperadores chineses. A Cidade Proibida - outro caso em que o nome diz tudo, no reverso da designação "o Marcelo".
A Cidade Proibida, que qualquer cidadão do mundo pode conhecer das imagens do filme "O Último Imperador", é o local turístico mais visitado de Pequim, a par da Grande Muralha; as filas para entrar acumulam-se na entrada que dá para a tristemente célebre Praça Tiananmen, e as multidões de turistas acotovelam-se pelos seus muitos pátios, palácios e pavilhões. Na manhã deste domingo (hora de Pequim), acumulavam-se ainda mais, porque tinham menos espaço por onde circular - o eixo principal da cidade ficou vedado para a visita de Marcelo. Por ironia, o Presidente que gosta de estar perto do povo viu o povo ser mantido bem à distância. Só no final houve uma breve aparição desse Marcelo que os portugueses conhecem (lá chegaremos).
Percorrendo os vários anéis da cidade - das zonas menos restritas, onde se realizavam as cerimónias protocolares de maior impacto, até às áreas privadas onde só o imperador e os seus mais próximos podiam circular -, Marcelo foi confirmando a rígida estratificação dessa sociedade em que um tinha poder absoluto sobre milhões que nunca o haviam visto. "Imperador não faz o meu género", comentou Marcelo para um jornalista, enquanto fazia pose para uma foto da praxe.
"E acabou mal, como se sabe..." Sim, acabou com uma revolução, e o imperador deposto e exilado.
"Noutros tempos..."
Adiante, já depois de ter percorrido quase todo o eixo central da cidade; depois de ter passado pelo Pavilhão da Harmonia Suprema, onde os oficiais prestavam homenagem ao imperador sem o poderem olhar, ou pelo pavilhão da música, onde o português Tomás Pereira, enviado de D. João V, punha o imperador Kangxi a par das últimas novidades da ópera barroca europeia, no século XVIII; já depois de ter assinado o livro de honra da Cidade Proibida, Marcelo chamaria a atenção para a diferença entre o poder total e distante de outros tempos, e o poder numa democracia como a portuguesa, escrutinado e próximo.
"Noutros tempos, o império chinês era infindo e a vida do imperador passava por uma estratificação social muito rígida, como se vê aqui, [onde] cada edifício corresponde a um estrato social e político diferente. [Isso] foi mudando no tempo. O imperador começou por ser invisível, ninguém o via, e pouco a pouco passou a ser visível, e no século XIX já ia assistir aos exames dos oficiais mais elevados do império, e finalmente esses oficiais podiam vê-lo face a face", comentou o Presidente, como se estivesse numa aula instantânea.
Não estará a política contemporânea a cair no extremo oposto, por excesso de visibilidade e mediatismo?, perguntaram-lhe.
"Depende muito das circunstâncias. Há hoje meios de acesso instantâneo ao que se passa na liderança do poder político que não havia naquela altura e não havia sequer no começo das democracias do século XX. A dúvida é até onde é que isso irá ao longo do século XXI. Parará algures? Ou, com as formas instantâneas de comunicação social ao acesso de qualquer pessoa, tudo o que é exercício do poder político e tudo o que respeita aos titulares de poder político passa a ser conhecido instantaneamente em todo o mundo? Como será no futuro? Não sabemos."
Marcelo não se queixa dessa visibilidade permanente, e usa-a para criar uma proximidade que lhe vale altos índices de popularidade - ou seja, poder. Mas admite que esta "exposição muito grande do poder político (...) significa pagar um preço - o próprio e todos os que o rodeiam; por outro lado, significa também um escrutínio, um controlo do poder político, muitíssimo mais apertado." Daí resulta um receio de que "haverá, porventura, cada vez menos disponíveis" para a atividade política.
Harmonia suprema com o povo
Já que o momento se prestava a paralelismos de vária ordem, um jornalista perguntou ao PR se na sua residência oficial, em Belém, alguma sala poderia ter o mesmo nome de um dos pavilhões da Cidade Proibida, chamado "da Harmonia Suprema". "Todas" - respondeu Marcelo de rajada - "Com todos os presidentes, e provavelmente até com os vários monarcas que lá viveram. Pense, na I República, o esforço de harmonia suprema que presidiu à atividade de inúmeros responsáveis que por lá andaram..."
O mesmo, continuou, na atualidade. "O papel do PR na Constituição de 1976 é um papel de construção da harmonia suprema. Um poder moderador, que em rigor vem da Carta Constitucional da monarquia portuguesa", explicou o Marcelo-constitucionalista.
E a visita não terminou sem Marcelo demonstrar aos chineses, que não estão habituados a estas coisas, o que é ser um Presidente em harmonia suprema com o povo. À saída da Cidade Proibida, uma pequena multidão de curiosos aguardava de telemóveis no ar para fotografar quem quer que fosse essa pessoa que merecia tanto aparato policial e de segurança. Antes de ir para o carro oficial, Marcelo fez o desvio que se impunha, para cumprimentar o povo que lhe acenava - tocou-lhes, sorriu-lhes, deixou-se fotografar ali mesmo, à mão de semear. O povo, mesmo que não soubesse quem ele era, gostou. Marcelo bem diz que não gostaria de ser um imperador longínquo e invisível. Mas nasceu para ser um Presidente próximo e mediático.