Houve um tempo, há muitos, muitos anos, em que Marcelo Rebelo de Sousa não era conhecido em todas as casas do país, nem era visita da família aos domingos à noite, à hora do jantar. Este episódio passa-se nesse tempo. O protagonista é quem bem sabemos - enérgico, astuto, divertido, imprevisível -, mas quando muitos ainda não sabiam quem ele era.
Esse era o problema de Marcelo por esses dias, no verão de 1989. A falta de notoriedade era o maior obstáculo que o ex-diretor e fundador do Expresso, ex-ministro dos Assuntos Parlamentares, ex-presidente da distrital de Lisboa do PSD e eterno agitador do partido tinha pela frente no empreendimento em que então se tinha metido: a candidatura à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. “Uma coisa maluca”, confessaria o próprio, anos mais tarde, mas que se lhe atravessou na vida sem o professor de Direito estar à espera: António Pinto Leite, então presidente da distrital de Lisboa, cúmplice de Marcelo na Nova Esperança (uma espécie de aldeia gaulesa liberal e cosmopolita dentro do PSD), precisava desesperadamente de um candidato que não tinha. Até que convenceu o amigo. Os problemas vieram depois: Cavaco não apreciou a ideia (mas isso resolveu-se), faltava dinheiro (arranjaram) e o candidato era um ilustre desconhecido, sobretudo em comparação com o principal adversário, nem mais nem menos do que Jorge Sampaio, que era, então, o líder do Partido Socialista.
“Bolas, Marcelo, saiu-nos um touro de 600 quilos para a praça!...”, desabafou Pinto Leite ao saber da candidatura de Sampaio, conforme relata o jornalista Vítor Matos na biografia do professor (“Marcelo Rebelo de Sousa”, ed. Esfera dos Livros, 2012). Era preciso dar a conhecer a aposta social-democrata, que tinha nome mais do que feito nas intrigas de políticos e jornalístas, mas poucos reconheciam na rua. Se a candidatura foi “uma coisa maluca”, a campanha ainda mais maluca foi. Até se atirou ao Tejo.
Asa delta no Cristo Rei e ideias assim
A primeira ideia para aumentar a notoriedade de Marcelo junto do povo era de estalo: o candidato subia ao Cristo Rei e atirava-se para um voo de asa delta. Seria sucesso garantido, mas nada garantia que o candidato vivesse para desfrutar da notoriedade que assim conseguisse. Ainda houve piadas sobre Marcelo desafiar Sampaio para um jogo de ténis ou um combate de boxe, mas o staff acabou por assentar no plano B: um mergulho no Tejo.
Convém pôr as coisas em perspetiva: o Rio Tejo em 1989 era coisa pouco recomendável, escura e porca, onde flutuavam dejetos de toda a espécie. Um esgoto a céu aberto, com ameaças bem visíveis e outras, invisíveis mas fáceis de adivinhar. Apesar de saber a porcaria para onde se ia atirar de cabeça, Marcelo não desanimou - ainda pensou em tomar vacinas para se precaver de coisas mais graves do que o risco de fazer má figura, mas não dava tempo… Nem isso o demoveu.
O grande momento foi marcado para 31 de agosto. Marcelo embarcou num cacilheiro, rodeado de dezenas de jornalistas quase tão entusiasmados como o mediático mergulhador. Como bom comentador de todo o tipo de fenómenos, comentou por antecipação a sua própria performance: “Vou nadar à vontade porque tenho a certeza de que em terra tudo correrá bem. Isso dá-me outra leveza de ânimo e a melhor descontração para as braçadas que tenho de dar até à margem”, disse aos jornalistas antes de se transferir do cacilheiro para uma lancha da Marinha, o Bonança, pois não tinha autorização para mergulhar do barco da Transtejo.
Conseguir, de todo, uma autorização para mergulhar no rio já tinha sido uma façanha, pois o regulamento do Porto de Lisboa, datado de 1919, proibía terminantemente banhos no Tejo. Superadas as burocracias, que tinham consumido tempo e energia ao staff de campanha, Marcelo deu o seu show. “Nunca vou ao fundo”, garantiu numa conferência de imprensa no meio do rio em que falou dos projetos que tinha para a frente-Tejo, e de si próprio. “Como maratonista que sou, não é que boie sistematicamente, mas desenvencilho-me com a minha capacidade de natação e consigo ultrapassar os obstáculos”, garantiu.
Mesmo antes de saltar para a água, os grandes objetivos da ação estavam cumpridos: conseguir atenção mediática e passar uma impressão de juventude, descontração e genica. Dessa forma, Marcelo dava-se a conhecer aos lisboetas com uma imagem bem diferente da de Sampaio, mas também da do primeiro-ministro. “Para sisudo já nos basta o Cavaco”, dizia um dos seus apoiantes, citado nessa semana numa reportagem d’O Independente.
Akido e exercícios respiratórios
Paulo Portas, o impulsionador do jornal que mais dores de cabeça dava ao cavaquismo, não escondia o seu entusiasmo com a candidatura de Marcelo (tudo isto se passa, recorde-se, bem antes da vichisoyse). Segundo Portas, a hipótese do professor ganhar Lisboa abria espaço a uma alternativa forte a Cavaco dentro do PSD. O seu jornal, por outro lado, não escondia o divertimento com a aventura fluvial de Rebelo de Sousa. “Vivia-se um ambiente misto de euforia e de peregrinação”, contava o semanário. “A militante social-democrata Virgínia Estorninho não escondia a sua excitação: ‘Será que ele vai vestir um fato de banho modernaço?’. Quando, enfim, Marcelo saiu [do camarote onde mudara de roupa], ouviram-se alguns assobios. Vestia bermudas verdes e brancas, t-shirt branca e sapatilhas de borracha. Estorninho não conseguiu disfarçar o desapontamento: ‘Afinal é um fato do tempo da Maria Cachucha!”
O candidato fez os últimos exercícios de aquecimento (já tinha feito aikido antes do embarque) e splash!, atirou-se à água. Por azar, apesar do aturado estudo das marés, teve de lutar contra elas: mergulhou quando a maré devia estar a mudar, mas a corrente estava mais forte do que o esperado, o que obrigou Marcelo a um esforço suplementar para não ser puxado para o Bugio. Valeu-lhe estar em boa forma.
Quando, por fim, chegou a terra, ofegante, de calções descaídos e já sem sapatilhas, cantou vitória. “Mostrei que sou um homem liberto de complexos. Faço política com alegria…” Foi, de facto, uma campanha alegre - incluíu até um dia do candidato ao volante de um taxi. Triste foi o resultado.